quinta-feira, 30 de abril de 2009

O termidor


Todo mês eles apareciam do nada... distribuíam alguns panfletos incendiários... falavam vagamente sobre fazer uma greve... pregavam mentiras deslavadas sobre aumentos que levariam nossos vencimentos às alturas... contavam uma fofoca vexatória sobre algum juiz... distribuíam tapinhas nas costas... bebiam do nosso café... e saíam sorrindo, repetindo a mesma nojenta saudação: "tchau pessoal, até a próxima"...

Eram os frouxos do Sindicato...

Vagabundos odiados pela grande maioria dos burocratas...

Há quem diga que todos nutrem uma inveja por esses homem e mulheres mal vestidos, que aparecem mensalmente nos panfletos sindicais apertando a mão de algum deputado babão...

E é possível que seja mesmo inveja o que todos sentem...

Afinal, a chapa eleita fica isenta de bater ponto durante todo o mandado... Faça idéia do que eles aprontam enquanto a maioria dos burocratas estão trancafiados numa Repartição mofada, escura, sujeitos à programação da rádio Antena 1 durante todo o expediente...

Os do Sindicato são apelidados "vagabundos duplos"; "burocratas biônicos"; "borra-botas"; "os da-lua"; ou simplesmente "zeros à esquerda"

Mas nem sempre foi assim

Quando o presidente do Sindicato era o Sr. M tudo era diferente...

Homem de idade, barriga, e careca avançadas... vestindo excentricamente seu terno jeans, de um azul há muito desbotado... desfilava por entre as Repartições como um general em revista à tropa...

Se o homem dizia que era greve, era greve mesmo... e quem se aventurasse a furar, que agendasse de uma vez o martelinho de ouro e o borracheiro pois as retaliações eram sérias... impunidade não existia para aquele homem... Foi amado por muitos, e temido pela maioria...

Reelegeu-se por mais 3 mandados e durante todos esses anos à frente do sindicato havia logrado conquistas homéricas: durante a Era M. o vencimento dos servidores mais que dobraram... bônus e gratificações brotavam pelas folhas de pagamento... relógios de ponto desapareciam misteriosamente... mulheres bonitas davam as caras nas festas de fim de ano... e até o café era mais gostoso.

Certa feita uma juíza recém- empossada acertou em cheio um tapa na cara do porteiro que lhe tentava impedir de adentrar o Tribunal com seu poodle...

E isso chegou aos ouvidos do Sr. M.

No dia seguinte o cachorro foi encontrado morto... largado nos degraus da escada de incêndio... tinha sofrido uma intoxicação alimentar combinada com uma diarréia aguda.

Amargando a morte do animal, a juíza deixou-se abater por um quadro de depressão profunda da qual nunca chegou a sair... acabou sendo aposentada por invalidez.

Aqueles tempos eram outros... sentíamos que éramos parte de algo maior e mais belo do que a Repartição... Éramos respeitados e temidos... não ríamos de piadinhas de juiz... vivíamos a alegria da ditadura maltrapilha e de baixo escalão... a burocracia-proletária estava no poder.

Hoje os burocratas andam cabisbaixos pelos corredores e pelas Repartições... tremem ao ver a figura do juiz... são extorquidos por flanelinhas das imediações e destratados por advogados... aquela placa com os dizeres "é crime desacatar funcionário público no exercício de sua função" não ostenta mais o brilho de antigamente, e já não se encontra nos balcões de atendimento...

Vivemos tempos sombrios desde que o Sr. M se foi...

O Sindicato hoje é uma piada de mau gosto.

Suga as contribuições sindicais e fretam um ônibus para um excursão farofenta a alguma cachoeira das redondezas durante o feriado emendado... promove festas de fim de ano horrorosas, frequentadas por pessoas igualmente horrorosas, numa churrascaria qualquer....

O velhote nos abandonou, aposentou-se e mudou para o sul de Minas com a esposa... Envelhece cada dia imerso numa terma mineral diferente, de onde sai todo enrugado ao cair da noite... Sentiria ele falta dos tempos em que reinava absoluto pelas Repartições?

E nós aqui também envelhecemos...

O que precisamos é de uma ideologia que nos faça rejuvenescer... fazer barulho... criar tumulto... lutar por qualquer coisa, por mais insana e absurda que possa parecer... assediar advogadas nos corredores... sair pelas ruas com um copinho de café na mão e um botom amarelo no peito:

"Aumento já!"

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Um distinto cavalheiro



Era um lindo dia de sol. E como de costume eu estava atrasado para mais um expediente vegetativo na Repartição...
Girei a maçaneta da porta, e antes mesmo de adentrar a Repartição, já me vinha na cabeça aquela cena usual...
Vislumbrei as mesas desorganizadas e ociosas... senti cheiro de cigarro e café que vindo da cozinha... vi alguém escornando a corcunda em alguma cadeira giratória frouxa... e é claro, vi aquela vagabunda fofocando no telefone algo sobre casamentos e divórcios...
Enfim, a típica e frustrada cena do nosso cotidiano burocrático e mofado.
Mas hoje as coisas tiveram um rumo diferente!
Abri aquela mesma porta, da mesmíssima maneira que venho fazendo a anos...
Desta vez, um cenário excitante, de mil e uma possibilidades se abriu diante de meus olhos de cansados e desiludidos de burocrata...
Foi menos com espanto do que com uma alegria incontida que constatei:
"O caos e a discórdia haviam se instalado na Repartição!"
Os vagabundos encontravam-se todos, sem exceção, de pé... contemplando igualmente incrédulos e excitados a discussão entre o Sr. R e a Sra. I...
Pelo que pude entender um lápis fora o começo da coisa toda.
O Sr. R havia pegado sem permissões um lápis da mesa da Sra. I; e pôs-se a fazer algumas ligações, tomando notas junto a todos os canis da cidade procurando por algum pastor alemão para cruzar com sua cadela...
Até aí tudo bem!
No entanto, uma vez tendo anotado informações sobre preços, divisões da cria entre os contratantes, etc. Ele havia colocado novamente na mesa da Sra. I o lápis emprestado... e esse tinha agora a ponta quebrada, e a borracha da outra extremidade completamente comida, inultilizada...
Foi então que a Sra. I, já com muito café na cabeça, no auge dos seus 100 quilos e dos 20 anos de frustração burocrática, começou:
"Isso é um absurdo! Uma blasfêmia! Uma profanação!",- ensaiava verborragias de efeito.
O Sr. R, homem de postura muito nobre e de muita objetividade, foi logo no x da questão:
"Não se faça de rogada... para que você usa esse lápis? Você não faz nada o dia inteiro! Não escreve nada, e muito menos tem o que apagar..."
Eu nutria certo respeito e adminiração velada pelo Sr. R...
Esse velho, era um burocrata à frente do nosso tempo... há muito decidira deliberadamente se desligar das preocupações que nos acometia, transcendendo sua consciencia burocrática à um estágio superior...
Ele simplesmente ignorava solenemente as ordens do chefe... não se preocupava em fingia estar trabalhando, nem mesmo na presença de juízes e altas autoridades... não desejava bons-dias a ninguém...
Lembro-me com clareza da naturalidade e da polidez com que, certa feita, telefonara ao Setor de Informática para pedir suporte na instalação de um programinha para jogar poker-online...
Era um verdadeiro gentleman... um dândi pobre a vegetar nas repartições públicas... um lorde até nas horas mais críticas... mas agora havia ido longe demais...
Fato é que há um código de conduta não-escrito entre os burocratas... para muita coisa se fecha os olhos... e a omissão deve ser por excelência a materialização de nossa conduta...
Mas o Sr. R acabara de quebrar a regra de ouro desse código: "um burocrata em hipótese nenhuma chama um outro burocrata de à toa"...
E aquele sábio homem tinha ciência do que acabara de fazer... Arriscaria dizer que estava arrependido a essa altura, mas mantinha um olhar nobre e ostentava ainda a pose da razão com fina dignidade...
Enquanto isso os outros vagabundos consolavam a Sra. I, que chorava soluçando como criança gorda e indefesa...
Decidiu-se implicitamente, por solidariedade à Sra. I, dar um gelo no Sr. R... mesmo sabendo todos que aquele homem não se afetava por coisas do tipo...
A essas alturas ele já pegara outro lápis e pôs-se novamente a procurar pelo pastor alemão que fecundaria sua cadela... como não havia papéis por perto, fazia as anotações na própria mesa em courvim...
Eu pensei desconsolado, enquanto tomava um cafezinho na cozinha:
"Não que ele se importe, mas passará o resto dos dias ignorado... Isso é ultrajante! Um homem como ele não pode ser simplesmente colocado na geladeira por ter falado a verdade... pobre Sr. R, vítima de seu desapego e de sua moralidade niilista."
Uma coragem foi me tomando enquanto o café me subia a cabeça:
"Vou sair em defesa dele... aceitemos nossa condição vagabunda, porém sejamos racionais... A verdade deve prevalecer... a verdade é nobre... portanto, a vagabunda deve aceitá-la, e o Sr. R deve ser perdoado"- arrisquei baixinho esse discurso infâme e desarticulado, e rumei para a sala da Repartição.
Chegando lá mais uma surpresa...
Todos, estavam ao redor do Sr. R, escutando atentamente o que dizia... inclusive a Sra. I!
Dele emanava uma atmosfera de respeito que se expandia por toda a sala. Todos os olhos vidravam-se nos seus... ele fazia gestos com tranquilidade e classe... e sobre a mesa da qual discursava aos outros vagabundos se espalhavam dezenas de volantes da mega-sena...
"Vejam vocês, há um padrão entre a distribuição dos números sorteados nos 4 quadrantes dos volantes com os resultado do jogo do bicho..."- explicava o Sr. R.
Não tardou para que eu entendesse do que se tratava...
A mega-sena estava acumulada... e os vagabundos decidiram tentar um bolão. E para isso foram pedir ajuda ao Sr. R... É que ele, com os métodos que desenvolvera durante as horas-mortas do expediente, já acertara 3 vezes a quadra e 1 vez a quina...
Era o dinheiro unindo as pessoas! O sonho brasileiro de ganhar na loteria e passar o resto da vida churrascando coçou no coração de cada um, e falou mais alto...
E assim uma segunda chance foi dada ao Sr. R...
Três acertos na quadra e um na quina...
Aquele velho era o único entre nós que tinha algum futuro!

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Medo e delírio na Repartição


O Chefe-Workaholic mais uma vez sofria um ataque de falta do que fazer...

Por algum motivo quando ia acabando o verão e o tempo começava a esfriar; as crises e ataques nervosos se tornam mais frequentes, trazendo uma série de inconvenientes ao ócio habitual...

Os doentios episódios começam com ele pisando forte, pra lá e pra cá pela Repartição... e abrindo armários. No próximo estágio ele passa a rondar as mesas dos vagabundos como um predator à espreita... Daí escolhia aquele servidor que mais aparentava estar de bem com a vida e a ele passava um trabalho inútil qualquer... na maioria das vezes um relatório, que acabava no lixo antes que alguém o lesse...

Vi ele olhar de soslaio para minha mesa... era um mau presságio!

Vendo-o esboçar uns passos em minha direção, levantei-me e segui rapidamente para o banherio... e lá me tranquei por uns instantes até ele se acalmar.

Só saí quando constatei que os passos frenéticos pela Repartição haviam cessado. "Parece que tudo voltou ao normal", pensei.

Agora ele recebia o Oficial de Justiça que acabara de voltar das ruas onde fora cumprir um mandado de intimação...

Sentado na minha mesa eu podia ver os dois... O Oficial tinha o mesmo ar cansado e frustrado de qualquer outro burocrata... Já o Chefe-Workaholic parecia bastante excitado.

É que tendo o Oficial cumprido o mandado de intimação, ele poderia agora trabalhar naquele processo que estava parado há meses em sua mesa...
Finalmente ele poderia, como gostava de dizer, "dar andamento ao feito"... Agora sim, teria uma tarde inteira de burocracias, certidões, carimbos, despachos e ofícios ... Seu coração palpitava de vontades...

"Então conseguiu encontrá-lo finalmente?", perguntou com a voz trêmula de prazer antecipado, já deixando escapar um sorrisinho nervoso.

"Sim... veja bem... eu...".

"Ótimo Sr. I, passe pra cá a intimacão que imediatamente darei andamento ao feito... nos termos da nova Legislação proceder-se-á um rito especial de maneira que..."- interrompeu o Chefe frenético.

"É que eu não pude o intimar..."

"O quê?", protestou o Chefe.

"Ele encontra-se no hospital... sofreu um AVC e está com uma espécie de bolha no cérebro... os médicos lhe deram 2 dias de vida. Dois dias é tudo que ele tem".

Estarrecido, o Chefe baixou o olhar... um silêncio fúnebre se instalou entre os dois... Ele estava submergido nos mais selvagens pensamentos burocráticos. ... Eu tinha alguma idéia do que aquele demente espírito lógico-formal maquinava.

"Diga... ele consegue assinar? mover as mãos?", perguntou o Chefe.

"Creio que não... o homem tem os olhos constantemente arregalados; a boca toda roxa e torta fica aberta e babando; as necessidades ele faz por meio de uma sonda... 2 dias é tudo que ele tem... Ainda que pudesse assinar, não seria mais coerente mandar arquivar esse processo? Afinal o que representa uma multa de R$ 51,75 para um homem que tem 48 horas de vida?", ponderou o Oficial de Justiça.

"Veja bem ... não há embasamento legal para isso. A Legislação prevê expressamente as causas de extinção do processo e morte iminente por aneurisma cerebral não se subsume em nenhuma delas". (seu tom não foi irônico, o burocrata acreditava piamente no que acabava de dizer!)

Aquela conversa já beirava o surreal... decidi que precisava de um café...

Fui até a cozinha enchi o copo até as bordas... provei... estava forte, como todo café de serviço público deve ser...
Tomando aquele copo inteiro era só uma questão minutos para eu ficar de bem com a vida até o fim do expediente.

Voltei então para a sala principal da Repartição... e para minha surpresa a encontrei vazia...

Agora era só eu em meio mesas em curvim, cadeiras giratórias, clipes, grampeadores, carimbos, tesouras cegas, colas e gominhas... Quando vazia, a desordenada e confusa Repartição, impunha respeito e medo...

Aonde teriam ido o Chefe e o Oficial?
Talvez decidiram voltar os dois ao hospital para levar a cabo a intimação antes que o morimbundo abotoasse o paletó... Se acretidasse em fantasmas, rezaria todas as noites para o espiríto daquele pobre homem voltar à terra para aterrorisar o frenesi do Chefe nas horas-mortas!

Subitamente meu coração dispara... fico tonteado... e escuto passos.

São passos fortes do Chefe pela Repartição...

'É ele... É ele vindo me aterrorisar com inultilidades'- pensei alto

Olho ao redor e não vi nada. Mas escutava os passos do Chefe... Pude escutá-lo marchar deseperadamente sobre a Repartição, mas continuava não vendo nada. Seria isso real ou o café bateu em revertério? Isto acontece às vezes!

Senti minha cabeça inchar, e pressão nas veias que irrigam meu cérebro subir vertiginosamente de uma hora para outra.

Pensei em aneurismas... fantasmas... e joguei fora o resto do café...

'o banheiro... rápido... o banheiro'- era preciso vomitar aquela porcaria!

terça-feira, 14 de abril de 2009

As horas-mortas



Já havíamos passado mais da metado do expediente.

Adentravamos agora as horas-mortas...

Os burocratas ancestrais há anos já falavam em "horas-mortas" para se referir ao período do expediente em que não há mais nada para fazer...

É nessas horas que cabe a cada um vagabundar à sua própria maneira.

Enquanto uns relêem pela quinta vez a mesma Reader's Digest que ronda as mesas desde o começo do ano... outros deitam a cabeça entre os braços e tentam inutilmente dormir... E os mais ousados fogem discretamente da Repartição para dar uma caminhada, fazer as unhas no salão, ou algo do tipo...

E eu reparo assustado a agonia do nosso Chefe...

Todos os dias nesse horário seu rosto se transforma... começa a suar frio... vai até a cozinha, pega um café e volta para sua mesa... suspira suspiros profundos... espalha alguns papéis na mesa só para depois reuni-los de volta... pega o telefone, pensa em algum número para discar, e depois coloca novamente no gancho... debate-se na cadeira tal qual peixe fora d'água...

O pobre coitado era um workaholic em plena repartição pública... A metáfora do peixe lhe assenta perfeitamente!

Ao contrário dos vagabundos, sofria a falta do que fazer...

No começo, aquele desassossego face ao ócio e seu repugnante apreço pela burocracia causavam-me um asco intolerável... Por quantas vezes eu saíra para o banco, à lanchonete, à loteria só para evitar o vegetar sufocante daquele homem...

Porém , com o tempo passei a entender e respeitar sua perspectiva da coisa toda...

Ele penteava-se todo, passava o gel no cabelo, vestia calças e camisas impecavelmente limpas e passadas, e chegava à Repartição...

E lá esperava todos os dias... o dia todo... uma ligação que nunca vinha... Esperava a ligação de uma espécie de Roberto Justus do serviço público...

Um homem que fosse o próprio avatar da burocracia... Um homem com um plano meticuloso, estritamente guiado por procedimentos do mais genuíno e inflexível formalismo legal.

Ele desejava fazer parte do plano desse homem; sonhava ser lançado numa odisséia burocrática de formulários, prazos, despachos, intimações, e maus tratos no balcão de atendimento...

Acontece que esse dia até hoje não chegou... e ninguém está disposto a dizer ao Chefe que nunca chegará.

Não há trabalho a fazer por aqui... O trabalho nos esqueceu e nós esquecemos como trabalhar...

Ainda não tiveram coragem de dizer a ele que a Repartição é como um limbo... que apesar de bater ponto todo dia estamos aqui aposentados por invalidez... isso tudo aqui é uma Matrix... um faz de contas.

Na Repartição a lógica da vagabundagem não admite suspensões ou derrogações.. É a triste realidade: por mais que o chefe queira mostrar eficiência ninguém verá.

Um workaholic no serviço público...liderando uma corja de vagabundos a zanzar pela cozinha o dia inteiro... sempre o primeiro a chegar e o último a sair...

O que posso fazer para ajudar esse cara?

domingo, 12 de abril de 2009

O inominável


Quando eu acordei já estava atrasado... Mais uma vez eu chegaria à Repartição ligeiramente fora do horário... até aí tudo bem!

Mas para piorar as coisas ao abrir o guarda-roupas constatei que não haviam camisas limpas para vestir...

Justo hoje que, excepcionalmente, eu cumpriria expediente no intimidador prédio sede... Com seu saguão em mármore... por onde os burocratas costumavam andar bem vestidos, diferentemente dos farrapos humanos da Repartição... O prédio sede era uma realidade igualmente vagabunda, porém mais elegante.

Incrível... simplesmente não havia camisas.

Foi então que abri a gaveta das meias e percebi que ainda tinha 2 únicas opções:

Uma camisa de malha cinza, bem parecida com o uniforme usado pelos boys... e uma camisa estampada com uma grande folha verde na qual se lia: La hoja de coca no es droga!

Cada camisa implicava um risco: ser confundido com um office-boy; ou passar um tempo em cana por fazer apologia às drogas...

Era uma escolha cruel... Por fim, vesti a camisa cinza de boy e murmurei baixinho: a sorte está lançada!

Os longos anos na Repartição acabaram com qualquer resquício de vaidade... Tanto é assim que certa feita já fui trabalhar vestindo uma calça de tactel...

Deixo claro que a questão das camisas nada tinha a ver com estética.

Para entender as nefastas consequências que poderiam acarretar caso eu fosse trabalhar usando a camisa de malha cinza, é preciso vislumbrar a demência institucional que se instalou no prédio sede desde a posse do último Diretor-Geral. Esse homem havia feito proibir os boys de usarem o elevador social .

Como o elevador de serviço encontrava-se em conserto, esses pobres coitados arriscavam trincar as vértebras pelas escadas, levando nas costas processos que somavam quase seu próprio peso em papel...

Enfim... quando cheguei à portaria do prédio sede, o saguão já estava vazio. Ninguém esperava pelo elevador... Um boy derretendo em suor passou por mim e seguiu pela escadaria.

A semelhança da camisas com o uniforme era incrível.

Mas eu estava decidido não subir aquelas escadas... pegaria o elevador com naturalidade. E se alguém viesse tirar satisfação dava logo uma carteirada!

O elevador veio vazio... entrei... apertei o 12.

Assim que começou a subir, um pânico de ser pego com aquela camisa me correu a espinha... Cruzei os braços por cima do peito e inclinei o tronco ligeiramente para baixo, diminuindo assim a área de contato visual... a visão da camisa cinza deveria ser evitada ao máximo...

Enquanto os número passavam indicando os andares uma voz me coçava o peito: vai... vai !

Foi o 1° o 2° e o elevador começava a desacelerar antes de chegar ao 3° andar.

Foi quando parou... as portas se abriram lentamente e me aparece nada mais nada menos que ele: o próprio Diretor-Geral em pessoa...

Senti vertigens... e minha visão embaçou...

Sua figura inteira não pude conceber... Tudo o que eu via eram recortes: um vulto gordo num terno impecável, uma papada suada, olheiras, cabelos transplantados, e uma boca de chupar ovo de onde escorria uma babinha...

Eu estava agora no vórtice de um terror inominável...

Aquele gordo estava por trás de tudo... Era o arquiteto de infinitas burocracias... Era um leviatã... um deus-burocrático...

Ele abriu a boca gorda e suas palavras me ecoavam o cérebro:

"Você não deveria estar aqui".

Como eu previa, a camisa cinza o levava a me confundir com um boy...
Eu poderia sem maiores complicações identificar-me como um burocrata da Repartição. Mas isso seria como admitir perante o supremo Diretor-Geral que: "em algum momento na minha vida profissional algo deu errado e me perdi... e hoje eu sou um vegetal... A pior espécie dentre as quais pode ser encontrada nessa triste máquina que o Sr. dirige...

Vaidades não tenho... mas sobrou ainda algum orgulho que máquina do Sr. Diretor-Geral não conseguiu ainda moer.

Saí cabisbaixo. "Desculpe"- eu disse ao passar por sua disforme figura. Não sei explicar porque, mas preferi que ele continuasse pensando que eu fosse mesmo um boy...

As portas do elevador se fecharam e levaram o Diretor-Geral...

Em estado de choque, eu fantasiava o elevador subindo até o último andar... E continuando a subir, estraçalhando a lage do prédio e voando até as nuvens levando suavemente aquele gordo pelas alturas...

Eu devia ter peidado lá dentro, pensei.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Onde os velhos não tem vez


Páscoa, Festa Junina e Natal: por três vezes ao ano os vagabundos abriam uma certa caixa azul e tiravam dali uma infinidade de bugingangas, todas mofadas e desbotadas...

É que na absoluta falta do que fazer, o Setor de Recursos Humanos se reunia com as chefias e as orientava a decorar as Repartições para as festividades...

De acordo com a psicologia barata constantemente pregada pelos lunáticos do RH, os servidores se sentiriam mais felizes e valorizados na Repartição se se pendurasse pelas paredes posteres do coelhinho da páscoa; papai-noel; e bandeirinhas coloridas...

Eu tinha uma teoria diferente: as decorações na Repartição, só trazem mais constrangimento e baixa-estima aos servidores, na medida em que infantilizam a única coisa que a eles confere certa dignidade- a esterelidade, graveza e sobriedade do ambiente burocrático...

Todo ano era a mesma estória, e esse ano não seria diferente...

Não escapamos ao constrangimento das paredes repletas de coelhinhos de pelúcia encardidos e dos ovinhos plásticos velhos e descascados se exibindo vergonhosamente sobre as mesas.

Como se pedisse desculpas pelo rídiculo espetáculo, o chefe chegou com uma sacola cheia de chocolates para fazer uma média com os vagabundos...
Todos comemos bastante , principalmente o Sr. D, um velhinho tarado que sofria de diabetes...

Enquanto todos detonavam o ovo de chocolate, chegou ao balcão de atendimento uma advogada em terninho preto, dona de belo sorriso, um corpo esguio, cabelos esvoaçantes... tanto os vagabundos quanto as vagabundas conchichavam: é ou já foi modelo... com certeza!

Já com a glicose nas alturas, e com o cérebro já bastante cafeinado, o velho D. ouriçou-se todo...

Ajeitou a camisa para dentro das calças... limpou a boca muxibenta suja de chocolate... abotoou o paletó... endireitou a postura... e seguiu solenemente para o balcão de atendimento.

Disposto a impressionar, gritou desdenhosamente em direção à cozinha, onde os outros vagabundos se entupiam com bombons:

"Os autos de impugnação devem aguardar o sobrestamento- digam isso ao Juiz".

Os vagabundos ficaram sem entender nada... apenas olharam-se em reprovação como se pensassem todos a mesma coisa: "a libido acaba com o que sobrou da dignidade de qualquer homem velho".

No balcão, a linda moça tinha os olhos fixos em algo que se posicionava logo atrás do Sr. D... Parecia imersa em algum pensamento feliz, era como se o Sr. D não existisse.
E ele esforçava-se por lapidar bem as palavras: "Senhorita, entenda que os procedimentos cartorários ordenam que eu lhe peça que apresenta a..."

Em transe a advogada arregalha os olhos e irrompe num urro esganiçado:

"aiiiiiiiiiiiiiii... que coelhinho lindo! Onde vocês compraram esse poster?"

O velho dá um pulo e quase sofre um ataque cardíaco... E aos poucos, constatada a insignificância do burocrata de fala difícil face o coelhinho da páscoa, seu rosto foi murchando...
A coisa descambou mesmo quando vieram juntas da cozinha três vagabundas lambuzadas oferecendo à advogada grandes nacos de chocolate derretido:

"menina adoro chocolate... que coelhinho lindo esse aí! quero um pra mim..."
"nossa você não faz regime? Que inveja!"...

A partir de então, as três vagabundas assumem o atendimento da linda moça numa orgia de fofoca regada a muito chocolate...

O Sr. D, encolhido e cabisbaixo, rumou desconsolado para a cozinha...

No caminho derrubou com um safanão o enfeite colorido que enfeitava sua mesa:

"Páscoa de merda!", esbravejou o velho.

Foi até o quintal e acendeu um cigarro... a cada tragada seu rosto murchava mais um pouco... sua glicose estava agora no pico...

Estralando a coluna pensava: "nesse mundo colorido, de lindas advogadas; de coelhinhos saltitantes; e pessoas alegremente comungando do mesmo chocolate, não há lugar para um burocrata velho e diabético ...".

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Águas de março


Hoje na Repartição flagrei a vagabunda da Sra. V assoviando baixinho o Samba da Benção de Vinícius de Moraes enquanto ela carimbava um calhamaço qualquer de folhas.

Tenho que confessar que a Sra. V é a pior servidora pública que já cruzou meus caminhos.

Essa Sra. faz tudo errado uma primeira vez... aí o chefe manda que ela refaça, mas ela erra tudo novamente... então o chefe desiste e passa o serviço da Sra. V para eu fazer.

Tanto é assim que quando a vi carimbando aquela pilha de papel, já separei meus carimbos e repus a tinta da minha almofada. Fui tomar um café aguardando o inevitável...

Mas uma coisa devo admitir: a Sra. V é das assoviadoras a melhor, sem dúvidas...

A fluidez com a qual ela concateava a melodia era cativante. Podia-se ver que ela colocava toda a alma nos seus assovios...

Da cozinha, com um copo de café na mão pus-me a ouvir mais atentamente o Samba da Benção assoviado pela Sra. V... Enquanto isso meus olhos fitavam aflitos a cada carimbada que a Sra. V desferia... Ela tá errando tudo, tenho certeza que ela tá errando, pensava eu.

Acabei o café e corri então para minha mesa... Pensei que quanto mais rápido eu recarimbar aquelas folhas, mais rápido poderia cascar fora dali. Afinal, eu decidira desde o começo do dia que eu teria um ataque de dor nos intestinos durante o expediente, e iria embora antes do fim do expediente...
Foi então que o chefe rumou para a mesa da Sra. V.... E não acreditou no que vira... Para sua surpresa o que ela vinha fazendo estava em ordem... E nessa exato momento começou a chover lá fora...

Do nada senti uma alegria inquietante. Levantei-me, segui até a mesa da Sra. V, e abri um largo sorriso: A senhora assovia com muita graça!

Ao ouvir isso o rosto da Sra. V rejuvenesceu 20 anos, e ela sorriu de volta mostrando os dentes todos amarelos e tortos.

Virei-me de costas, e ela voltou a carimbar... assoviava agora Águas de Março...
Às vezes tudo do que nós só precisamos é de um incentivo, um elogio, uma palavra de fé...

domingo, 5 de abril de 2009

Resultado da enquete musical


Encerrou-se a enquete musical!
Respondendo à pergunta: Qual é o hino das repartições públicas?

O Resultado foi o seguinte:

Sultans of Swing - Dire Straits: 3 votos / Hunting high and low - A-HA: 2 votos / I started a joke - Bee Gees: 2 votos / Say you say me - Lionel Richie: 1 voto / Feelings - Morris Albert: 1 voto / Another day in paradise - Phil Collins : 0 votos / Rocket Man - Elton John: 0 votos / Woman in chains - Tear for Fears: 0 votos / It must have been love - Roxette: 0 votos / Tears in Heaven - Eric Clapton: 0 votos

Confesso que não esperava tal resultado.

A votação pífia de Sir Elton John, e o voto computado em favor de Lionel Richie pegaram-me de surpresa...

Fato é que a voz do povo é a voz de Deus... E o povo decidiu por 3 votos que Sultans of Swing, da banda britânica Dire Straits é o hino das repartições públicas brasileiras. Ou seja, é a música mais tocada pelas rádios nas quais os burocratas se sintonizam durante o expediente...

Obrigado aos participantes... E vamos à próxima enquete vagabunda que versará sobre os vilões do serviço público.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Aprendiz de vagabundo


A Secretaria de Informática resolveu bloquear o acesso ao portal da globo.com, a blogs e a sites de games em geral...

Tal arbitrariedade causou rebuliço sem precedentes entre os vagabundos...

Formou-se uma cadeia de solidariedade que até então eu nunca tinha visto antes na Repartição...

Burocratas nunca foram muito solidários, tampouco organizados... a última tentativa de greve ilustra isso bem. Lembro-me claramente daquela cena lamentável: meia dúzia de vagabundos vestindo preto, usando bottons "aumento já", e soprando apitos em frente o prédio sede.

A reação à restrição do uso da internet na Repartição fora bastante diferente... Para minha surpresa todas aquelas vozes preguiçosas se uniram em solidariedade aos burocratas-internautas.

Lametaram a sorte da vagabunda que recentemente pagara uma nota por uma conta num site de buraco on-line; a da noiva que não sabia cozinhar, e agora corria atrás do tempo perdido imprimindo as receitas da Ana Maria Braga... e a de tantos outros.

Minha preocupação maior era com o fim das postagens "in loco"... o que comprometeria a qualidade do blog...

Alguns dias mais tarde veio à tona o motivo daquela louca decisão: ao final do expediente, naquelas horas-mortas em que a Repartição começava a esvaziar, um boy menor de idade havia sido pego em flagrante se masturbando na sala do Juiz enquanto acessava sites de pornografia pesada.

Isso de certa forma tranquilizou os vagabundos...

Então aquilo tudo não era uma investida em prol da eficiência do serviço público, mas sim uma resposta a um fato isolado...

Então o problema era de fácil solução! Abriu-se um processo administrativo contra aquele jovem...

Não foi difícil demonizar o pobre coitado... Ele era o mesmo boy que na festa de fim de ano havia enchido a cara de uísque; dançado rala-coxa com a namorada do Juiz; e vomitado nas escadas da Repartição.

Restou então comprovado: era mesmo um delinquente... e não poderia trabalhar mais lá.

Pronto... resolvido o problema. Nada mais justificava proibir o acesso à Internet em função de um só pivete que não sabia usar um computador com moderação e responsabilidade.

Por um lado fico contente em poder eventualmente jogar um pac-man e atualizar o blog...

Mas sinto um nó na garganta ao olhar para a mesa do boy e vê-la vazia... Ele costumava ficar na dele... sentado ali o dia inteiro a desenhar carros tunados e a mandar mensagens pelo celular. No final do expediente, ele vinha me pedir ajuda com o para-casa de inglês...

Era um cara legal... mas exagerou na dose.

Por que ele tinha que fazer aquela idiotice?
 
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