domingo, 31 de maio de 2009

Anunciação



Era mesmo um daqueles dias malditos: uma impressora estragada... um carimbo desaparecido... um imbecil que derramou todo o café da garrafa logo na primeira hora de expediente... A essa altura da minha carreira de burocrata, já deveria saber ler esses proféticos sinais de desgraça...
Um burocrata experiente na vagabundagem, como o Sr. R por exemplo, fareja em pequenas tragédias como essas, o prenúncio de merdas de incalculáveis complexidades... Mas eu, apesar de meus numerosos e dolorosos anos tortos na Repartição, ainda tinha muito a aprender com aquele misterioso homem...

Quando eu disse que sairia para almoçar, o respeitado Sr. R, o velho burocrata que ora fumava seu cigarro de palha no quintal, gritou lá de fora:
"Se eu fosse você não iria" O velho desvairado olhava fixamente o sol, que ardia num céu sem nuvens

"Por quê? O chefe tá para chegar?"- perguntei-lhe.

Mas o Sr. R nada respondeu. Fiquei no vácuo. E ele, a olhar misteriosamente para cima.

Encenei uma banana mental ao velho e saí para almoçar.

É curioso observar como mesmo levando na bunda várias vezes, e cada vez mais fundo, algumas pessoas não aprendem... Em que estado de fome e loucura estava eu quando fui ignorar uma sugestão do sábio Sr. R?

Só dei conta do meu desvairio quando, sentado à mesa da República do Rango chegara meu PF:

"Almôndegas"- deixei escapar num misto de tristeza e revolta.

Bem, o problema não eram as almôndegas em si. Mas sim o fato de eu ter me esquecido completamente de que era quinta-feira...

Explico-me melhor...

É que na República do Rango o cardápio variava segundo uma equação que obedecia a uma lógica cruel de crescentes reaproveitamentos e conservantes químicos... Segunda-feira havia bife; terça, picadinho; a quarta, carne-moída; e quinta, almôndegas...

Era tarde demais para lamentar a falta de prudência em não ter ouvido o Sr. R...

Comi, entrei na fila, paguei, e pus-me no trajeto de 4 quarteirões de volta à Repartição...

Eu caminhava a passos largos... Pois sabia bem que era só uma questão de tempo até que os conservantes começassem a fazer efeito... Sabia muito bem que a dor de cabeça e a sensação de empanzinamento seriam inevitáveis... Minha esperança era que quando os limites do corpo cedessem eu já estivesse no conforto da Repartição... tirando um cochilo na sala de arquivo... escondido por entre caixas de processos empoeiradas... dividindo espaço com fungos esbranquiçados... e traças gordas...

Foi no segundo quarteirão que senti ela vindo... a lombeira.

Eu esperava, ansiosamente e fora da faixa de pedestres, uma brecha no trânsito para atravessar a avenida...

O tempo estava contra mim... meu corpo colapsaria dentro de alguns minutos...

Bem ao longe vislumbrei aliviado uma espaço perfeito entre um palio cinza e o tráfico nervoso e estressado que vinha logo em seguida dele... Era ali ou nunca...

De acordo com meus calculos, bastava aguardar que o palio cinza passasse e aí eu poderia, correndo, atingir o canteiro central sem maiores dificuldades.

Segundos mais tarde eu perceberia que eu calculara mal... O palio cinza vinha bem mais lento do que eu imaginava, e os carros de trás bem mais frenéticos... Logo logo, aquele tranquilo espaço que me permitiria uma gloriosa travessia seria engolido pelo intermonável fluxo de carros, motos, vans, lambretas e caminhões...

Pronto era o fim... ela chegou finalmente! Meus passos desnortearam-se... senti fincadas pulsarem fundo no cérebro... meus olhos incharam... tudo me parecia embaçado... era a lombeira mais forte dentre todas as que eu já havia experimentado... Nem litros e litros de café me trariam de volta às condições normais nas próximas horas...

Só me restava esperar o palio cinza passar, e caso tivesse forças gritar-lhe algumas impropriedades... canalizar toda minha desgraça e ódio na figura daquele motorista lerdo.

Aguardei então o palio cinza...

Entorpecido pela moleza e sob o calor escaldante do sol de meio-dia, ele vinha lentamente... pude ouvir que o rádio sintonizava um bolero... Eu só não estava preparado para o que ver o que vi... não podia ser verdade... era a lombeira que agora me pregava peças?

Aquele braço para fora da janela ostentando um cigarro de palha... a blusa azul desbotada... os cabelos brancos:

Era o Sr. R!

Elegante, imponente, e ao som de um bolero... o velho deslizava o palio vagarosamente pelas ruas...

Numa jogada de mestre o Sr. R simplesmente pegou o carro e foi embora antes mesmo da metade do expediente...

Alucinado sob os efeitos dos conservantes, pensei em como deveria ter ouvido aquele homem... e no quanto deveria aprender com ele... mas isso são águas passadas... não adianta chorar pelo leite derramado... devemos levantar a cabeça e enfrentar a vida...

Agora era preciso que eu me concentrasse na única coisa que importava ali naquele momento: não ser atropelado!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O mundo da lua


É muito comum cozinhar em pleno expediente.

Mas organizar um almoço para os vagabundos da Repartição era um processo complexo cuja gestação deve começar lá por volta das 9 horas da manhã.

Primeiro era preciso que algum infeliz propusesse o cardápio e, contrariando a inércia burocrática, orçasse as compras e fizesse circular um envelope dentro do qual deveriam tilintar moedas sujas em meio a notas amarrotadas de pequeno valor...

Isso pode parecer simples, mas na verdade é algo que demanda mais trabalho do que o serviço de todos os vagabundos juntos durante uma semana inteira.

São várias as dificuldades envolvidas no processo:

1) nunca há unânimidade quanto ao cardápio do dia. Enquanto uns querem costelinha, outros querem frango ou bife à milanesa;

2) O envelope costumam circular por quase uma hora por entre as mesas da Repartição até que seja levantado um montante decente para as compras.

3) A Dona N., faxineira que é desviada de sua função para fazer o almoço, quando via aquele dinheiro circulando, antecipava-se ao prelúdio de sua desgraça e sumia furtivamente.... É preciso mandar alguém investigar seu paradeiro pela Cantina, e por outros becos escuros do prédio onde ela costuma se esconder.

4) Na hora de lavar a louça é necessário proceder outra busca à Dona N., que desaparecia novamente.... E dessa vez as chances de encontrá-la eram significantemente menores... isso pois são muitas as variáveis que contam a favor da Dona N como o fato de estarem todos empazinados, e já com início de dores de cabeça provocados pela comida... Assim, a louça sempre sobrava para algum vagabundo.

Considerados todos esses inconvenientes sempre fui incisivamente contra os almoços no expediente...

Fora que não acho certo unir duas ou três mesas, sem ao menos estender uma toalha, e sair lambuzando processos, e ofícios com molhos e gorduras...

É que com o tempo fui levado a sustentar um estranho respeito por essas cadeiras giratórias, por essas mesas em courvim, e pelo traças e mofos que saem desses processos que ora querem engordurar... Aprendi que aqui é o lugar do silêncio, da meditação frustrada, e do sono constante... Para sobreviver ao expediente, a Repartição exige de nós certo grau de melancolia e austeridade...
E por isso mesmo dispensei solenemente o envelope pidão que haviam colocado em minha mesa...

Mesmo branco de fome, agradeci a atenção e inventei que já tinha almoçado...

Ainda assim eu sofreria a tortura de ver os vagabundos rodeando a mesa tal qual primatas... prontos para lambuzar tudo no que conseguirem por as mãos.

Eu e a Dona N. dividiamos a frustração... Ela, por eles sujarem a louça; e eu, por eles desrespeitosamente engordurarem a Repartição.

Mas era preciso esfriar a cabeça... eu andava muito estressado... muito nervoso... e como de hábito muito frustrado... era preciso relaxar... viver mais leve... ver o melhor em cada uma daquelas pessoas...
Mas enquanto eu não estivesse preparado para isso era melhor tentar ignorar aquela cena grotesca.

Então sentei-me frente ao computador... abri o explorer e digitei lá : http://www.nasa.gov/

Como era lindo o Cosmos!
Havia um mundo fantástico lá fora... onde as pessoas eram competentes... onde se faziam coisas importantes... descobertas incríveis...

Quando criança, lembro-me claramente de ter dito a meu pai que seria astronauta quando crescesse...

E minhas notas em matemática eram até boas...

Aí eu me pergunto:

"ONDE FOI QUE EU ERREI?"

domingo, 17 de maio de 2009

No covil dos morcegos


A tentativa de chegar à Cantina do prédio anexo pelo quintal tinha me custado os sapatos... meu mocassin de burocrata já havia sido encardido por completo pela lama do descampado.

Eu bem podia ter evitado todo os inconvientes dos fundos: a lama, o matagal, os mosquitos da dengue...

Eu poderia ter saído pela porta da frente num agradável passeio até a lanchonete da esquina... passar pela banca de revistas... zanzar pelos corredores do supermercado... fazer meia dúzia de jogos na loteria... pagar uma conta de luz... tudo isso antes ou depois de beber um mate-couro e comer uma esfirra.

Mas infelizmente hoje eu deveria me contentar com a Cantina do prédio anexo.

Lá era um dos poucos lugares nessa cidade em que se ainda vende fiado... e como eu havia esquecido a carteira em casa, não me restava outra escolha... Ou eu enfrentava os salgados horrorosos da Cantina... ou passava o resto do expediente bebendo café de barriga vazia.

Passei então pelo quintal e cheguei lá...

A Cantina era um grande salão mal iluminado e úmido... escondido no final de um corredor remoto... o teto despencava em infiltrações... Era um lugar esquecido pelos burocratas... raríssimas vezes algum vagabundo dava caras por lá...

Como eu, todos preferiam passear na hora do lanche... O fato da Cantina ser um lugar deserto contribuiu para que, com o tempo, aquele espaço virasse um ponto de encontro para os boys, faxineiros e vagabundos dos serviços geraes...

Era para lá que essas pessoas, não propriamente burocratas, mas tão avessas ao trabalho quanto nós, passavam horas escondidas... tagarelando... gritando impropriedades... contando piadas e lendo o Super do dia anterior...

Fui seguindo pelo corredor e pude ouvir o burburinho que vinha da Cantina...

Assim que entrei, pude contar lá dentro cerca de vinte vagabundos... o clima de vadiagem era total... estavam todos escorados pelas paredes ou sentados no chão...

Ao me virem entrar, todos calaram-se... mesmo de mocassin sujo minha presença chegou a impor certo respeito...

O clima era tenso... eu sabia que não era bemvindo ali...

E eu sabia que assim que pedisse um salgado fiado os meus 15 segundos de respeito cairiam por água abaixo e eu seria motivo de escárnio na boca desse bando de vadios até o dia da minha aposentadoria...

Mas o inesperado aconteceu...
Entrou pela porta da Cantina um boy desavisado de minha presença... o vagabundozinho vinha andando malacozamente... balangando forçadamente os braços por detrás das costas e pisando firme... pensando abafar:

- Fala morcegada! - gritou para a Cantina.

O silêncio fez o clima ainda mais tenso...o constrangimento abateu-se sobre todos... e aos poucos a Cantina foi esvaziando envergonhadamente... cabisbaixa...

Na verdade aquele boy maloqueiro havia me feito um favor. Agora poderia pedir um salagado fiado sem olhares reprovadores.
Aproximei-me da moça que atendia no balcão... Ela tinha os olhos esbugalhados numa cara de poucos amigos. Antes que eu dissesse qualquer coisa ela foi logo disparando:

- Cambada de vagabundo! Vai arrumar uma privada para desintupir! Morro de raiva desse povo! E fico com pena de vocês servidores públicos que morrem de trabalhar e nem tempo tem de vir aqui fazer um lanche tem... Enquanto isso esses vagabundo ficam aqui o dia inteiro morcegando... até colchão no chão pra dormir eles colocam...

O ódio e a injustiça sentidos por aquela mulher eram reais e estavam esbugalhado em seus olhos... E a minha vergonha de burocrata estava estampada na minha cara... mas ela não via.
Ela realmente acreditava que nós burocratas trabalhavamos?
Ou seria a mente dela que, no afã de autopreservar a sanidade, alucinara subterfúgios para esconder o fato de que ela era a única alma em todo o prédio que pegava no batente...
Não era possível que a moça esbugalhada tivesse tamanha fé no zelo e profissionalismo dos burocratas.
Ela estava mesmo doente... a pobre moça sofria de febris alucinações... Tive vontade de abraçá-la... de dizer a ela que as coisas iriam mudar... que alertaria o Diretor e ele os colocaria todos no olho da rua... mas não pude.

Olhei para a coxinha que transbordava na gordura, para o molho de pimenta que estava sobre o balcão e para os olhos da moça que me fitavam à espera de uma resposta confortadora.

Mas a única coisa a meu alcance que poderia consolá-la era, com a ajuda daquela coxinha... daquela pimenta... e de algum rolo de papel higiênico, dar àquela morcegada um diarréico trabalho para fazer.

sábado, 9 de maio de 2009

O pardal maldito


A cena era patética: o corpo todo torto na cadeira; as mãos inertes sobre o teclado; a boca meio aberta e os olhos atentos num pardal raquítico e feio que me encarava de cima do muro...

Era sempre assim... bastava eu sentar perto da janela e me acometiam distrações, dispersões e paranóias de toda sorte...

Enquanto isso o serviço que deveria, em tese, ser feito acaba sendo protelado para uma outra hora... um outro dia... uma outra semana... e enfim o dia de São Nunca!

Já era a quinta vez que eu refazia aquele mesmo bendito ofício. Os erros consecutivos vinham causando em mim um estado de crescente agonia.

À medida que eu identificava um erro aparecia outro no lugar, o que fez necessárias até o momento quatro tentativas : 1) tinha vírgula fora do lugar; 2) havia dois pontos finais seguidos ; 3) a numeração do ofício estava errada; 4) havia um erro ortográfico grosseiro...

A cada tentativa a minha ansiedade crescia mais...

Meu coração disparara, as mãos tremiam, um sorriso travado repuxou-me o rosto, e senti minha bexiga contrair-se subitamente... estava a ponto de me mijar as calças.

Levantei-me da cadeira com as pernas trêmulas e balancei os braços desengonçadamente em direção ao pardal maldito que me espiava da janela... minha intenção era espantá-lo dali... aquele pardal era culpado de tudo, era ele que me tirava a concentração!

Eu balançava os braços cada vez mais agressivamente, e o bicho continuava a me ignorar solenemente...

Havia uma advogada no balcão que se encontrava bastante preocupada com a minha situação... por duas vezes me perguntara se estava tudo bem... Certamente imaginava que eu estava apresentando sintomas preliminares de um ataque epilético.

Sentei-me, fechei os olhos, e coloquei todos meus esforços em pensamentos positivos: "Desta vez vai... fique calmo... não se desespere... não olhe para o pardal... agora você vai fazer de uma vez esse ofício... tomar um café... e tirar o resto da semana de folga... afinal, você merece!"

E assim eu procedi às correções pertinentes; e dei o comando de impressão.

Peguei os ofícios com as mãos trêmulas e frias... meu coração saltava pela boca... hesitei em lê-lo... senti que havia alguma coisa errada com ele... meu sexto sentido burocrático palpitava.

Eu o tinha relido antes na tela do computador 3 vezes antes de mandar essa impressão... mas na tela é uma coisa, na folha é outra... é sempre assim... é a lei da impressão e do desperdício de papel!

E realmente meu sexto sentido estava correto...

Quando reli aquele ofício que eu tinha em minhas mãos não pude acreditar como erros como aqueles tinham surgido no processo de redação, muito menos como puderam passar desapercebidos na leitura que fiz ainda na tela do computador.

Por entre 4 ou 5 frases simples e de pouca complexidade que compunham o corpo do texto, haviam sido inseridas intercaladamente e sem nexo algum com o texto as palavras: "pardal"; " passarinho" e " avião".

Olhei pela janela, o pardal não estava mais lá...Olhei para o balcão de atendimento, a advogada também tinha se ido...

Uma lágrima desesperada correu o meu rosto...
Corri para a cozinha e peguei um copo de café... De lá podia ver o Sr. R, ele contemplava o céu azul...
Aquele homem era mesmo um exemplo para todos nós... Vinte anos de serviço público e nenhuma ruga de preocupação ou desespero...

"É preciso exercitar a positividade do pensamento... para ser feliz devemos saber lidar com essas situações de stress que nos acometem no dia a dia... tirar delas o melhor ensinamento..."-ponderei, olhando para o Sr. R, enquanto tentando me acalmar.
"Existe pardal no jogo do bicho?"- perguntei -lhe
 
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