quarta-feira, 22 de abril de 2009

Um distinto cavalheiro



Era um lindo dia de sol. E como de costume eu estava atrasado para mais um expediente vegetativo na Repartição...
Girei a maçaneta da porta, e antes mesmo de adentrar a Repartição, já me vinha na cabeça aquela cena usual...
Vislumbrei as mesas desorganizadas e ociosas... senti cheiro de cigarro e café que vindo da cozinha... vi alguém escornando a corcunda em alguma cadeira giratória frouxa... e é claro, vi aquela vagabunda fofocando no telefone algo sobre casamentos e divórcios...
Enfim, a típica e frustrada cena do nosso cotidiano burocrático e mofado.
Mas hoje as coisas tiveram um rumo diferente!
Abri aquela mesma porta, da mesmíssima maneira que venho fazendo a anos...
Desta vez, um cenário excitante, de mil e uma possibilidades se abriu diante de meus olhos de cansados e desiludidos de burocrata...
Foi menos com espanto do que com uma alegria incontida que constatei:
"O caos e a discórdia haviam se instalado na Repartição!"
Os vagabundos encontravam-se todos, sem exceção, de pé... contemplando igualmente incrédulos e excitados a discussão entre o Sr. R e a Sra. I...
Pelo que pude entender um lápis fora o começo da coisa toda.
O Sr. R havia pegado sem permissões um lápis da mesa da Sra. I; e pôs-se a fazer algumas ligações, tomando notas junto a todos os canis da cidade procurando por algum pastor alemão para cruzar com sua cadela...
Até aí tudo bem!
No entanto, uma vez tendo anotado informações sobre preços, divisões da cria entre os contratantes, etc. Ele havia colocado novamente na mesa da Sra. I o lápis emprestado... e esse tinha agora a ponta quebrada, e a borracha da outra extremidade completamente comida, inultilizada...
Foi então que a Sra. I, já com muito café na cabeça, no auge dos seus 100 quilos e dos 20 anos de frustração burocrática, começou:
"Isso é um absurdo! Uma blasfêmia! Uma profanação!",- ensaiava verborragias de efeito.
O Sr. R, homem de postura muito nobre e de muita objetividade, foi logo no x da questão:
"Não se faça de rogada... para que você usa esse lápis? Você não faz nada o dia inteiro! Não escreve nada, e muito menos tem o que apagar..."
Eu nutria certo respeito e adminiração velada pelo Sr. R...
Esse velho, era um burocrata à frente do nosso tempo... há muito decidira deliberadamente se desligar das preocupações que nos acometia, transcendendo sua consciencia burocrática à um estágio superior...
Ele simplesmente ignorava solenemente as ordens do chefe... não se preocupava em fingia estar trabalhando, nem mesmo na presença de juízes e altas autoridades... não desejava bons-dias a ninguém...
Lembro-me com clareza da naturalidade e da polidez com que, certa feita, telefonara ao Setor de Informática para pedir suporte na instalação de um programinha para jogar poker-online...
Era um verdadeiro gentleman... um dândi pobre a vegetar nas repartições públicas... um lorde até nas horas mais críticas... mas agora havia ido longe demais...
Fato é que há um código de conduta não-escrito entre os burocratas... para muita coisa se fecha os olhos... e a omissão deve ser por excelência a materialização de nossa conduta...
Mas o Sr. R acabara de quebrar a regra de ouro desse código: "um burocrata em hipótese nenhuma chama um outro burocrata de à toa"...
E aquele sábio homem tinha ciência do que acabara de fazer... Arriscaria dizer que estava arrependido a essa altura, mas mantinha um olhar nobre e ostentava ainda a pose da razão com fina dignidade...
Enquanto isso os outros vagabundos consolavam a Sra. I, que chorava soluçando como criança gorda e indefesa...
Decidiu-se implicitamente, por solidariedade à Sra. I, dar um gelo no Sr. R... mesmo sabendo todos que aquele homem não se afetava por coisas do tipo...
A essas alturas ele já pegara outro lápis e pôs-se novamente a procurar pelo pastor alemão que fecundaria sua cadela... como não havia papéis por perto, fazia as anotações na própria mesa em courvim...
Eu pensei desconsolado, enquanto tomava um cafezinho na cozinha:
"Não que ele se importe, mas passará o resto dos dias ignorado... Isso é ultrajante! Um homem como ele não pode ser simplesmente colocado na geladeira por ter falado a verdade... pobre Sr. R, vítima de seu desapego e de sua moralidade niilista."
Uma coragem foi me tomando enquanto o café me subia a cabeça:
"Vou sair em defesa dele... aceitemos nossa condição vagabunda, porém sejamos racionais... A verdade deve prevalecer... a verdade é nobre... portanto, a vagabunda deve aceitá-la, e o Sr. R deve ser perdoado"- arrisquei baixinho esse discurso infâme e desarticulado, e rumei para a sala da Repartição.
Chegando lá mais uma surpresa...
Todos, estavam ao redor do Sr. R, escutando atentamente o que dizia... inclusive a Sra. I!
Dele emanava uma atmosfera de respeito que se expandia por toda a sala. Todos os olhos vidravam-se nos seus... ele fazia gestos com tranquilidade e classe... e sobre a mesa da qual discursava aos outros vagabundos se espalhavam dezenas de volantes da mega-sena...
"Vejam vocês, há um padrão entre a distribuição dos números sorteados nos 4 quadrantes dos volantes com os resultado do jogo do bicho..."- explicava o Sr. R.
Não tardou para que eu entendesse do que se tratava...
A mega-sena estava acumulada... e os vagabundos decidiram tentar um bolão. E para isso foram pedir ajuda ao Sr. R... É que ele, com os métodos que desenvolvera durante as horas-mortas do expediente, já acertara 3 vezes a quadra e 1 vez a quina...
Era o dinheiro unindo as pessoas! O sonho brasileiro de ganhar na loteria e passar o resto da vida churrascando coçou no coração de cada um, e falou mais alto...
E assim uma segunda chance foi dada ao Sr. R...
Três acertos na quadra e um na quina...
Aquele velho era o único entre nós que tinha algum futuro!

7 comentários:

  1. Eu queria ser o sr.R...admitir a própria inutilidade é um ato nobre. Uma lição de vida. Que pensamentos devem rondar a cabeça deste homem? Santo Deus...

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  2. gostaria de apresentar o sr. R ao meu tio. ele anda tentando por varios anos ficar milionario na sena. porem os jogos dele nao seguem nenhuma linha...

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  3. Sugiro que, ao terminar de responder um comentário, inclua os seguintes dizeres: "Na ocasião, renovo meus mais elevados protestos de estima e consideração". Afinal, burocrata que se preza termina todos os seus documentos dessa forma!

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  4. isso ai é uma puta caretice...esquece essa coisa de democracia, filho, neto...toma uma pinga e deixa o mundo rodar...

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  5. Burrocrata, você tem algum e-mail? Certa vez, enquanto participava de uma reunião de burocratas, escrevi um poema, talvez te interesse. Abraço.

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  6. Ilma. D. Zefa,

    Claro que tenho interesse no seu poema.

    Com sua autorização, posso até mesmo postá-lo.

    Durante o expediente tento escrever alguns, pena que acabam sempre no lixo...

    Att.

    O Burrocrata

    PS. Encaminhei-lhe meu email pelo msn

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  7. Bom, como eu não uso msn, dá uma checada no blogdazefa.blogspot.com . É o quinto post, chamado "A reunião". Caso se interesse, pode publicar. O estilo é bem diferente dos seus posts; mas o que importa é que o poema foi escrito durante uma reunião de burocratas, entre um gole e outro de café.

    Beijo da Zefa.

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