sábado, 27 de junho de 2009

Sonhos gordos de inverno


O inverno na Repartição é época dos sonhos acordados.

As friagens desses dias trazem tremores às pernas e bambezas indolentes aos pensamentos.

O melhor que se pode fazer nessas horas mortas é arrastar uma cadeira para perto da janela e aproveitar uns parcos raios de sol enquanto se olha o movimento lá fora...

E foi justamente o que eu fiz...

Acontece que cada janela tem um dono... (a melhor sem dúvidas é a janela da mesa que recentemente foi apropriada pelo Sr. R)... e a minha é de todas a que tem pior vista: o porteiro e uma parede descascada era tudo o que eu via lá de fora.

A porra daquele porteiro era tudo o que eu tinha para me distrair!

O porteiro fofocando pela centésima vez a mesma piada indecente... o porteiro secando a mesma ninfeta que passava lá pelas duas da tarde... o porteiro contando vantagens para o flanelinha... o porteiro tomando café... o porteiro posando de xerife para uma velha que lhe pedia uma informação.

Estava cansado daquele homem.

E por isso eu olhava o céu

Havia muitas nuvens bonitas... era relaxante vê-las dançar graciosas ao som das impressoras a laser... Uma nuvem em particular me chamou a atenção e serviu de mote para essas lembranças que agora passo a relatar.

Aquele cúmulo pesado, cinzento e gordo que se arrastava lentamente fazia lembrar os contornos monstruosos da Sra. L... a gorda louca do Setor de Recursos Humanos.
Foi numa desvairada tarde de segunda-feira que a vi pela primeira e única vez. Tamanho trauma e desgaste me causara o episódio que desde aquele dia rezo sempre para que nunca mais eu torne a participar de semelhante absurdo... daquele despropósito... daquela insensatez espalhafatosa patrocinada pela Sra. L.
Éramos uma turma de cerca de 20 burocratas recém empossados... era nosso primeiro dia no serviço público... faziamos o programa de treinamento que duraria uma semana... tinhamos o passo firme, as colunas eretas, e a esperança no começo de uma vida profissional cheia de desafios e emoções.

Foi então que nos encaminharam para o pátio...

Lá havia uma tenda branca meio encardida... a tenda havia sido montada bem no meio do pátio e sob ela havia uma mesa de lanches com coxinhas... pasteizinhos... e uma garrafa de refrigerante diet... Tudo levava a crer que os salgados estavam frios e o refri quente...

Aquilo já não estava me cheirando bem...

Mas foi quando avistei sobre a mesa um micro-system e uma listinha entitulada "exercícios de ginástica laboral-motivacional" é que tive certeza que a coisa iria ficar mesmo feia.

Antes mesmo que eu pudesse simular uma dor de cabeça ou algo que me tirasse dali escutei fortes palmas e um grito alegre:

" Vamo lá gente... todo mundo dando as mãos e fazendo um círculo"

Era tarde demais...

Virei-me e dei de cara com ela: assim como gorduras, penduricalhos dourados saltavam de tudo quanto é lado... as roupas coloridas e esvoaçantes... a maquiagem pesada... e uma alegria doentia cuidadosamente construída ao longo de milhares de páginas de auto-ajuda...

Por medo de ter de pagar uma prenda ainda mais vergonhosa não ofereci resistência e ingressei logo no círculo tirânico daquela gorda.

Estavamos todos aterrorizados, pois sabíamos muito bem o que nos aguardava...

A gorda nos obrigaria a uma apresentação na qual deveríamos inventar alguma sandice sobre nossas qualidades e defeitos... os mais tímidos seriam entregues para cristo, pois a gorda os faria encenar um teatrinho... haveria uma mini-gincana e deveríamos fingir empenho e competitividade... e para finalizar a gorda ligaria o micro-system e faria tocar uma canção do Lulu Santos ao som da qual todos deveríamos cantar e dançar de mãos dadas...

E foi o que realmente houve...

Mas algo ainda mais incrível aconteceu.

Assim que a música acabou, soltamos logo as mãos suadas do companheiro ao lado... foi quando foguetes começaram a estourar... Provavelmente era algum morador da favela próxima a anunciar a subida das barcas policiais... Mas para a gorda louca os foguetes tinham um significado diferente.

Tão logo ela ouviu os foguetes arregalou os olhos e berrou:

"Esses foguetes são para vocês gente... vocês merecem... vocês lutaram tanto para chegar até aqui ... e terão uma carreira brilhante... palmas para vocês"

E nós, constrangidos, batemos palmas com ela na esperança que tudo aquilo acabasse logo.

Depois dos foguetes fomos liberados... sem não antes sermos obrigados a um último suplício: colocar o nome e o email em uma lista de contatos.

É que essa lista seria usada pela gorda louca para nos convocar para uma confraternização a se realizar dali a três anos: o "Baile da Estabilidade".

Assinei meu nome na lista... falsifiquei um email que não exisitia... e sai dali o mais rápido que pude...

Na minha cabeça uma frase martelava: "Meu Deus... essa mulher é louca... essa mulher é louca"

Segui andando enquanto olhava para trás... a Sra. L agora dançava sozinha e desengonçada debaixo da tenda... a cada passo que eu dava sua imagem ficava menor e mais gorda...

... até virar uma bolinha colorida quicando no meio do pátio cinzento.

domingo, 21 de junho de 2009

Senhor dos destino


Passam-se burocraticamente os anos... trocam-se as chefias... trocam-se as mesas em courvim e as cadeiras giratórias.... aumentam as minhas dores nas costas. Certas coisas mudam. Mas aprendi desde cedo na carreira que a há coisas que não mudarão nunca. Há coisas que encerram a própria essência angustiada do burocrata: vazios, inércias; ausências; silêncios; carimbos e ofícios...

É preciso adaptar-se delicadamente às lerdezas da Repartição ou sofrer as chagas de uma eficiência estéril... Perdendo a dignidade na tentativa de se mostrar útil... Esse é o caso do nosso pobre chefe.

Desde que a Seção de Contratos lhe enviou um ofício implorando para que nao lhes fossem mais encaminhados Relatórios que não fossem requisitados, que não tinham motivos para existir, e que ocupavam inutilmente espaço na sala de arquivos, o chefe deprimiu-se e não vem trabalhar.

Ele não vem trabalhar e por consequência a Repartição fica como eu a encontrei hoje...

Vazia.

As mesas vazias... o balcão vazio... o secar de uma almofada de carimbo ao relento... e um mosquito que hiberna sobre uma impressora encardida.

Não havia ninguém.

Mas eu sabia muito bem onde todos eles estavam. Atravessei as mesas solitárias, passei pela cozinha e já pude ouvir os burburinhos nos fundos. Os vagabundos se reuniam em torno de uma mesa plástica... alguns de pé, outros sentados... mas todos igualmente resguardados sob a sombra daquela árvore feia e mal cuidada... a única em todo o descampado poeirento do quintal.

Puderam me ver chegando. E perceberam meu olhar inquisitor de quem mesmo sem moral nenhuma para questionar vagabundagens, ainda que saber: "Por que vocês não estão lá dentro?"

Antes que eu abrisse a boca para perguntar qualquer coisa a Sra. P foi logo se adiantando:

"Disseram que a caixa d´água está transbordando e o teto ameaça ceder sobre nossas cabeças... nessas condições não dá para trabalhar."

E voltaram a tagarelar alegremente tal qual crianças desfrutando o horário vago na falta de um professor ao compromisso.

Eu peguei um café e fiquei por lá a rondar os vagabundos. Aqueles assuntos realmente não me interessavam: receitas de canjiquinha e arroz-doce; relatos de gloriosos feriados no hotel-fazenda; consultas ao médico; diagnósticos desencontrados; e cânceres em família. O único ali que poderia me entreter era o Sr. R- que mais uma vez havia atestado sua sagacidade saindo mais cedo do expediente.

Ficar ali era perda de tempo.

Resolvi entrar por dois motivos: 1) Talvez ver de perto a caixa d´água explodir e ser soterrado em meio aos escombros da Repartição fosse a coisa mais emocionante que pudesse acontecer comigo em toda a minha vida de burocrata; 2) Desde que eu botei os pés na Repartição hoje, eu vinha sentindo meu coração palpitar dizendo que algo de importante estava para acontecer.

Entrei e sentei-me ao balcão.

Apurei o ouvido para qualquer baruho estranho vindo do teto que anunciasse a catástrofe. Mas eu nada ouvia.

Fiquei lá a tarde inteira à espera de alguém... um advogado insolente com um falar difícil... um cidadão comum que viesse humildemente pedir uma informação.

Mas ninguém veio. Os vagabundos também não vieram.

Já adentrava o fim de expediente... o sol se punha... tudo ficara ainda mais triste... o café ficava mais frio... e eu preparava para deixar o balcão quando ele entrou.

Era alto... sua presença impunha... e mesmo tentando, não conseguia dissumilar que ele não era. Mesmo debruçando sobre o balcão e escondendo o rosto envergonhadamente por trás dos óculos escuros, não pude deixar de reconhecê-lo.

Por respeito ao seu esforço, fingi não saber quem ele era. Fingi que não se tratava de um famoso ator que há muito andava desparecido do horário nobre.

Antes poderoso; rodeado por lindas mulheres; dono de um grande ego semanalmente massageado no Faustão... Agora cabisbaixo; feito um cachorro assustado; implorando por urgência na certidão.

O que fazer numa situação dessas? Qual é a coisa certa?

Compadecer de seu sofrimento, driblar todos esses procedimentos burocráticos patentemente inúteis e dar-lhe logo a certidão? Ou por respeito ao brasileiro médio, submetê-lo aos mesmos trâmites que tanto desespero causam às pessoas comuns?

A vida biônica de burocrata nos impõe dilemas para os quais nossos corações humanos não estão preparados para enfrentar.

O homem não é um número... a lei não é senhora de nossos destinos.

Enquanto eu pensava nessa coisas ele irrompeu impacientemente do outro lado do balcão:

"Dá para agilizar? Tenho mil e um compromissos para ontem..."

Ele tornara as coisas mais fáceis...

Dei-lhe então a lista com todos procedimentos para se obter a certidão... imprimi 3 guias de recolhimento a serem pagas no banco... e orientei-lhe que voltasse daqui a 1 semana.

E aqui na Repartição até hoje o teto ameaça despencar.

sábado, 6 de junho de 2009

Visão do paraíso


Foi com espanto que os vagabundos da Repartição receberam a notícia de que a Sra. V, a vagabunda que fazia tudo errado, nunca mais daria as caras por lá.

O chefe havia dado a notícia rapidamente e voltado à sua sala, onde continuou se entretendo com pequenos trabalhos inventados. Por sua vez, os outros burocratas presentes reuniram-se na cozinha e puseram-se a fofocar entre goladas de café e farelos de biscoito água e sal.

A reunião vagabunda que começara com um furdúncio de protestos indiganados, evoluíra agora para suspiros e cochichos secretos... velório burocrático.

A atmosfera era de culpa... É que só agora depois da notícia do frenético chefe percebeu-se que a há quase um mês Sra. V não vinha vadiar na Repartição... Uma alma sequer acusara sua ausência... Tamanha era sua importância para o lento caminhar dos procedimentos cartorários que ninguém perguntara por ela... Sua mesa encontrava-se agora exatamente como a um mês atrás: vazia...

Os vagabundo encheram novamente os copos com café e, corroídos pela culpa, inventavam elogios capegas à Sra. N: "Ela era uma ótima servidora... muito prestativa... nunca se atrasava... nunca deixava faltar tinta às almofadas de carimbo... tinha sempre um clipe à mão...". E terminaram dissimulando por unanimidade que sentiriam falta dela.

Contemporizada a culpa nos corações e subido o café às cabeças, algumas perguntas vieram à tona...

Como pode um modelo de vagabundagem daqueles que era a Sra. N ter sido aposentada por invalidez em função de L.E.R?

Ora, esta era doença de gente trabalhadora... estressada... frenética... A menos que tal patologia fosse também causada por preguiçosa paralizia das juntas, a Sra. V não poderia a ter contraído... Haveria a pacata Sra. V aplicado o perigoso golpe do diagnóstico comprado?

Era uma possibilidade... nunca se deve subestimar a força com a qual os burocratas perseguem os sonhos da aposentadoria precoce por invalidez.

Fuxicar a vida alheia é para um vagabundo mais do que um hábito... é quase um dever. No entanto, mais importante do que desvendar o estranho caso do primeiro servidor público a contrair L.E.R., era resolver a disputa pela mesa da Sra. V.

Se a aposentadoria por invalidez é um longínquo sonho ... a mesa da Sra. V passou a ser uma sonhada realidade possível a todos os vadios dali...

Era a visão do paraíso burocrático... Uma mesa em courvim limpa ... longe do balcão de atendimento e de estridentes aparelhos telefônicos... completamente escondida por uma pilastra dos bisbilhotamentos do chefe... ventilada de frente por uma ampla janela que convidava um solzinho preguiçoso pela manhã... estirada ao lado do bebedouro.... e logo abaixo de uma verdejante samambaia, que remete a alma mais deseperada e frustrada ao sono e à paz interna.

Todos inclusive eu manifestaram vontade em tomar posse da mesa deixada pela Sra. V.

Mas eu sabia que minhas chances eram poucas... não gozava de prestígio entre os burocratas... e não estava disposto a ingressar uma longa negociação junto àqueles vagabundos.

O velho,tarado e diabético, o Sr D. preferiu continuar em sua mesa próxima ao balcão... Assim poderia conferir mais de perto as advogadas que se aproximavam e com alguma sorte engatar uma constrangedora conversa mole.

A disputa ficou então entre dois vagabundo.

Um, para angariar apoio, propunha bancar o almoço de toda a Repartição durante 2 meses... O outro se dipunha a deslocar duas linhas telefônicas para a mesa, aliviando os companheiros da irritante tarefa de atendê-los.

A Repartição dividiu-se entre esses dois lados. Estavam empatados. E faltava ainda um burocrata a opiniar...

Como não poderia deixar de ser, a decisão de minerva estava sobre os ombros do mais experiente e sábio: O Sr. R...

O elegante dândi burocrático fumava no quintal alheio ao furdúncio todo causado pela controvérsia da mesa perfeita.

Chamado a opinar veio andando ereto e a passos lentos e graciosos rumo à mesa onde todos encontravam-se reunidos. Ao passar pela cozinha encheu um copo de café e entrou esfumaçando o ambiente com seu cigarro.

As partes expuseram seus argumentos e seguiu-se um longo silêncio até que o Sr. R começasse a deliberar...

Olhando fixo a mesa disputada disse solenemente ao vagabundo que propusera subornar os colegas com almoços pagos: " Nem tudo nesta vida está a venda!".... E ao que havia se proposto a atender as duas linhas que seriam deslocadas para a mesa: "Você está fora do seu juízo? Pretende macular a tranquilidade desta mesa perfeita com dois telefones?".

E prolatou sua sentença que por natureza era irrecorrível: "Eu sou o mais antigo de casa, e fico então com a mesa!"

Para selar a decisão, o Sr. R, num gesto simbólico, abre a gaveta e joga lá dentro seu maço de cigarros.

Nenhum questinamento sobre a decisão surgiu.

A questão da mesa estava pacificada.

O paraíso tinha um novo dono.
 
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