domingo, 26 de julho de 2009

O teatro de sombras


O chefe havia reunido os vagabundos em torno de uma ociosa mesa para exercitar um pouco da fala difícil... de tempos em tempos ele tinha essa necessidade de confessar a esmo um vocabulário rebuscado e fora de contexto...

Era menos uma reunião do que uma tragédia encenada... um monólogo triste retratando os esforços de um rábula em sua agonia na luta homérica contra as palavras...

O tema em pauta não importava... Aliás, nem mesmo havia um tema... Do que poderíamos esperar que ele falasse? Dos novos critérios quantitativos a serem observados nos procedimentos de refill das almofadas de carimbo? Da proposição de novas diretrizes para a reforma dos cabeçalhos dos formulários de ofício? Da abertura de inquérito administrativos para investigar o culpado pelo não fechamento da garrafa de café no dia anterior?

Mesmo cientes da completa perda de tempo que aquilo tudo representava, éramos todos solidários com aquele homem... Afinal, tínhamos todo o tempo do mundo para perder... Tempo livre era o que não faltava...

Ademais, havia ali um acordo muito sutil... Deixávamos o homem encarnar uma mistura de Roberto Justus com Rui Barbosa por alguns instantes durante o mês; e ele não nos pertubaria com trabalhos inventados...

Franzíamos as sombrancelhas... apoiávamos levemente cotovelo na mesa e o rosto no indicador e polegar... inclinávamos o corpo para frente... e deixávamos ele devagar sobre procedimentos, portarias, protocolos... Enfim, tudo aquilo que em geral era passível de imprimir novas dificuldades a coisas simples e corriqueiras....

Não raro eram as vezes em que, durante essas reuniões encenadas, improvisávamos nosso papel de maneria mais ativa e esforçada... Quando percebíamos que ele se travara nas armadilhas de uma contrução sintáxica ardilosa por ele próprio concebida, intervínhamos para livrá-lo do constrangimento...

Lembro-me de que certa vez após discorrer sofregamente acerca de uma nova Lei que absolutamente nenhum efeito prático implicava para o funcionamento da Repartição; o chefe abrira pela primeira vez espaço para a intervenção de seus interlocutores vagabundos:

"Tendo em vista considerar encerrada a exposição de motivos dessa nova Lei, ora passo a palavra à mesa... para fins de comentários acerca do tema em tela".

Todos entreolharam-se com surpresos... Ninguém esperava por essa... Não justamente agora que já adentrávamos o sagrado horário de almoço... Teria ele sentido que estávamos com nossas mentes a anos-luz de distância daquela Repartição durante sua fala? Teria ele o intuito de nos castigar por não estarmos fingindo atenção com o devido afinco?

Fato é que tudo indicava que, até o momento, aquela reunião não saciara sua perversão pelas palavras difíceis... Então ele foi além:

"Temos ainda alguns minutos para a inclusão de uma outra pauta... sugestões?"

Houve um silêncio mórbido e acanhado... Era um silêncio tirâncio que emanava do chefe e espalhava-se em todas as direções... dominando a mesa inteira, salvo a minha extrema direita...

É que de lá rugia uma cadeira giratória que desde o começo da reunião vinha sendo tranquilamente e discretamente embalada de uma lado para o outro...

Sentado ereto nessa cadeira... com o semblante sereno... os dois cutuvelos descansando simetricamente no apoio de braços... os dedos entrelaçado à frente do peito... lá estava o único homem capaz de nos redimir: o Sr. R

Ele parecia saber que contávamos com ele para evitar que fossemos privados do horário de almoço, sendo submetidos a mais meia hora de desnecessariedades...

E nós tínhamos certeza que aquele homem não nos decepcionaria.

Sua voz ressoou clara, densa, e elegante- todos atributos que o léxico jurídico capenga do chefe não tinha.

"O que vamos fazer com aquela caixa de marimbondos na sala de arquivo?"- inquiriu o Sr. R

Meu corpo estremeceu... os músculos do abdomem se contraíram a ponto de eu conseguir conter o riso... mas não pude deixar que escapasse um ruído gutural e que um sorriso torto se instalasse no meu rosto...

"Bem... eu... eu... não creio que esse assunto seja adequado a esse foro"- gaguejando, o chefe replicou.

"Ótimo, podemos todos almoçar então" -disse o Sr. R, e foi logo se levantando.

Todos fizeram o mesmo em seguida...

O chefe não teve como reagir... ele ficou pasmo... colhendo papéis sobre a mesa... naquele momento até mesmo as palavras mais simples e singelas lhe fugiam... era o preço que agora pagava pelo desprezo cultivado por elas...

O Sr R. saía em direção à porta.

Alcancei-o... bati às suas costas e perguntei respeitosamente onde ele iria almoçar.

"Em casa"- respondeu secamente, e continuou caminhando tranquilo.

Eu o observava parado à porta... Antes de entrar no carro, tirou um cigarro de palha do bolso da camisa surrada, acendeu-o com uma longa baforada e colocou os óculos escuros... os poucos cabelos brancos que ainda tinha desgrenhavam-se ao vento...

"Faz um café para a gente tomar quando eu voltar"- gritou sem olhar para mim antes de arrancar no palio cinza.

Eu então corri para a cozinha e fiz o café mais forte que alguém poderia conceber... gastei praticamento o pó de um pacote interio... e aguardei o Sr. R até o fim do expediente... mesmo sabendo que as chances dele voltar naquela tarde para a Repartição eram mínimas.
 
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