quinta-feira, 16 de abril de 2009

Medo e delírio na Repartição


O Chefe-Workaholic mais uma vez sofria um ataque de falta do que fazer...

Por algum motivo quando ia acabando o verão e o tempo começava a esfriar; as crises e ataques nervosos se tornam mais frequentes, trazendo uma série de inconvenientes ao ócio habitual...

Os doentios episódios começam com ele pisando forte, pra lá e pra cá pela Repartição... e abrindo armários. No próximo estágio ele passa a rondar as mesas dos vagabundos como um predator à espreita... Daí escolhia aquele servidor que mais aparentava estar de bem com a vida e a ele passava um trabalho inútil qualquer... na maioria das vezes um relatório, que acabava no lixo antes que alguém o lesse...

Vi ele olhar de soslaio para minha mesa... era um mau presságio!

Vendo-o esboçar uns passos em minha direção, levantei-me e segui rapidamente para o banherio... e lá me tranquei por uns instantes até ele se acalmar.

Só saí quando constatei que os passos frenéticos pela Repartição haviam cessado. "Parece que tudo voltou ao normal", pensei.

Agora ele recebia o Oficial de Justiça que acabara de voltar das ruas onde fora cumprir um mandado de intimação...

Sentado na minha mesa eu podia ver os dois... O Oficial tinha o mesmo ar cansado e frustrado de qualquer outro burocrata... Já o Chefe-Workaholic parecia bastante excitado.

É que tendo o Oficial cumprido o mandado de intimação, ele poderia agora trabalhar naquele processo que estava parado há meses em sua mesa...
Finalmente ele poderia, como gostava de dizer, "dar andamento ao feito"... Agora sim, teria uma tarde inteira de burocracias, certidões, carimbos, despachos e ofícios ... Seu coração palpitava de vontades...

"Então conseguiu encontrá-lo finalmente?", perguntou com a voz trêmula de prazer antecipado, já deixando escapar um sorrisinho nervoso.

"Sim... veja bem... eu...".

"Ótimo Sr. I, passe pra cá a intimacão que imediatamente darei andamento ao feito... nos termos da nova Legislação proceder-se-á um rito especial de maneira que..."- interrompeu o Chefe frenético.

"É que eu não pude o intimar..."

"O quê?", protestou o Chefe.

"Ele encontra-se no hospital... sofreu um AVC e está com uma espécie de bolha no cérebro... os médicos lhe deram 2 dias de vida. Dois dias é tudo que ele tem".

Estarrecido, o Chefe baixou o olhar... um silêncio fúnebre se instalou entre os dois... Ele estava submergido nos mais selvagens pensamentos burocráticos. ... Eu tinha alguma idéia do que aquele demente espírito lógico-formal maquinava.

"Diga... ele consegue assinar? mover as mãos?", perguntou o Chefe.

"Creio que não... o homem tem os olhos constantemente arregalados; a boca toda roxa e torta fica aberta e babando; as necessidades ele faz por meio de uma sonda... 2 dias é tudo que ele tem... Ainda que pudesse assinar, não seria mais coerente mandar arquivar esse processo? Afinal o que representa uma multa de R$ 51,75 para um homem que tem 48 horas de vida?", ponderou o Oficial de Justiça.

"Veja bem ... não há embasamento legal para isso. A Legislação prevê expressamente as causas de extinção do processo e morte iminente por aneurisma cerebral não se subsume em nenhuma delas". (seu tom não foi irônico, o burocrata acreditava piamente no que acabava de dizer!)

Aquela conversa já beirava o surreal... decidi que precisava de um café...

Fui até a cozinha enchi o copo até as bordas... provei... estava forte, como todo café de serviço público deve ser...
Tomando aquele copo inteiro era só uma questão minutos para eu ficar de bem com a vida até o fim do expediente.

Voltei então para a sala principal da Repartição... e para minha surpresa a encontrei vazia...

Agora era só eu em meio mesas em curvim, cadeiras giratórias, clipes, grampeadores, carimbos, tesouras cegas, colas e gominhas... Quando vazia, a desordenada e confusa Repartição, impunha respeito e medo...

Aonde teriam ido o Chefe e o Oficial?
Talvez decidiram voltar os dois ao hospital para levar a cabo a intimação antes que o morimbundo abotoasse o paletó... Se acretidasse em fantasmas, rezaria todas as noites para o espiríto daquele pobre homem voltar à terra para aterrorisar o frenesi do Chefe nas horas-mortas!

Subitamente meu coração dispara... fico tonteado... e escuto passos.

São passos fortes do Chefe pela Repartição...

'É ele... É ele vindo me aterrorisar com inultilidades'- pensei alto

Olho ao redor e não vi nada. Mas escutava os passos do Chefe... Pude escutá-lo marchar deseperadamente sobre a Repartição, mas continuava não vendo nada. Seria isso real ou o café bateu em revertério? Isto acontece às vezes!

Senti minha cabeça inchar, e pressão nas veias que irrigam meu cérebro subir vertiginosamente de uma hora para outra.

Pensei em aneurismas... fantasmas... e joguei fora o resto do café...

'o banheiro... rápido... o banheiro'- era preciso vomitar aquela porcaria!

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