domingo, 12 de abril de 2009

O inominável


Quando eu acordei já estava atrasado... Mais uma vez eu chegaria à Repartição ligeiramente fora do horário... até aí tudo bem!

Mas para piorar as coisas ao abrir o guarda-roupas constatei que não haviam camisas limpas para vestir...

Justo hoje que, excepcionalmente, eu cumpriria expediente no intimidador prédio sede... Com seu saguão em mármore... por onde os burocratas costumavam andar bem vestidos, diferentemente dos farrapos humanos da Repartição... O prédio sede era uma realidade igualmente vagabunda, porém mais elegante.

Incrível... simplesmente não havia camisas.

Foi então que abri a gaveta das meias e percebi que ainda tinha 2 únicas opções:

Uma camisa de malha cinza, bem parecida com o uniforme usado pelos boys... e uma camisa estampada com uma grande folha verde na qual se lia: La hoja de coca no es droga!

Cada camisa implicava um risco: ser confundido com um office-boy; ou passar um tempo em cana por fazer apologia às drogas...

Era uma escolha cruel... Por fim, vesti a camisa cinza de boy e murmurei baixinho: a sorte está lançada!

Os longos anos na Repartição acabaram com qualquer resquício de vaidade... Tanto é assim que certa feita já fui trabalhar vestindo uma calça de tactel...

Deixo claro que a questão das camisas nada tinha a ver com estética.

Para entender as nefastas consequências que poderiam acarretar caso eu fosse trabalhar usando a camisa de malha cinza, é preciso vislumbrar a demência institucional que se instalou no prédio sede desde a posse do último Diretor-Geral. Esse homem havia feito proibir os boys de usarem o elevador social .

Como o elevador de serviço encontrava-se em conserto, esses pobres coitados arriscavam trincar as vértebras pelas escadas, levando nas costas processos que somavam quase seu próprio peso em papel...

Enfim... quando cheguei à portaria do prédio sede, o saguão já estava vazio. Ninguém esperava pelo elevador... Um boy derretendo em suor passou por mim e seguiu pela escadaria.

A semelhança da camisas com o uniforme era incrível.

Mas eu estava decidido não subir aquelas escadas... pegaria o elevador com naturalidade. E se alguém viesse tirar satisfação dava logo uma carteirada!

O elevador veio vazio... entrei... apertei o 12.

Assim que começou a subir, um pânico de ser pego com aquela camisa me correu a espinha... Cruzei os braços por cima do peito e inclinei o tronco ligeiramente para baixo, diminuindo assim a área de contato visual... a visão da camisa cinza deveria ser evitada ao máximo...

Enquanto os número passavam indicando os andares uma voz me coçava o peito: vai... vai !

Foi o 1° o 2° e o elevador começava a desacelerar antes de chegar ao 3° andar.

Foi quando parou... as portas se abriram lentamente e me aparece nada mais nada menos que ele: o próprio Diretor-Geral em pessoa...

Senti vertigens... e minha visão embaçou...

Sua figura inteira não pude conceber... Tudo o que eu via eram recortes: um vulto gordo num terno impecável, uma papada suada, olheiras, cabelos transplantados, e uma boca de chupar ovo de onde escorria uma babinha...

Eu estava agora no vórtice de um terror inominável...

Aquele gordo estava por trás de tudo... Era o arquiteto de infinitas burocracias... Era um leviatã... um deus-burocrático...

Ele abriu a boca gorda e suas palavras me ecoavam o cérebro:

"Você não deveria estar aqui".

Como eu previa, a camisa cinza o levava a me confundir com um boy...
Eu poderia sem maiores complicações identificar-me como um burocrata da Repartição. Mas isso seria como admitir perante o supremo Diretor-Geral que: "em algum momento na minha vida profissional algo deu errado e me perdi... e hoje eu sou um vegetal... A pior espécie dentre as quais pode ser encontrada nessa triste máquina que o Sr. dirige...

Vaidades não tenho... mas sobrou ainda algum orgulho que máquina do Sr. Diretor-Geral não conseguiu ainda moer.

Saí cabisbaixo. "Desculpe"- eu disse ao passar por sua disforme figura. Não sei explicar porque, mas preferi que ele continuasse pensando que eu fosse mesmo um boy...

As portas do elevador se fecharam e levaram o Diretor-Geral...

Em estado de choque, eu fantasiava o elevador subindo até o último andar... E continuando a subir, estraçalhando a lage do prédio e voando até as nuvens levando suavemente aquele gordo pelas alturas...

Eu devia ter peidado lá dentro, pensei.

11 comentários:

  1. talvez se vc tivesse peidado ele nao teria percebido a cor da sua camisa e sim a carniça que vc iria provocar dentro do elevador...

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  2. de qualquer forma vc seria reprimido...
    A alternativa eh sempre guardar uma camisa verde ou branca para os dias de trabalho no predio ilustre.

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  3. Ilma. Sra. Vivian,

    Anotados os conselhos: não cometer flatulências no elevador; ter sempre limpas camisas verdes e brancas.

    Esteja certa que levarei esses sábios conselhos pelo resto da vida.

    Att

    O Burrocrata

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  4. Realmente impressionante sua atitude, sair do elevador e evitar explicações com o abjeto diretor - geral. Congrats!
    Se fosse eu teria encarado e quebrado o pau. E usaria a camisa da coca...

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  5. Sr. Burrocrata,

    Admirável sua posição em relação ao deus-burocrático.

    Mas, tanto a flatulência, como a eructação na saída do elevador seria hilário. (kkkk...)

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  6. reza a lenda que os deuses-burocráticos gostam de ser elogiados. Coisas simples, do tipo: "vc é diretor-geral, não é?"...

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  7. Acho que não pediria desculpas e apenas tomaria meu rumo como se aquele ser burocrático nem estivesse ali...com todo seu ego o silencio seria o pior castigo.

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  8. os deuses burocráticos devem ser cordialmente venerados. Nasceram para a alienação. E quando morrem...viram carimbo ou pó de café...

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  9. Ilmo. Sr. Hempbiker,

    Concordo, a indifença faria aquele gordo murchar que nem balão de festa dormido!

    Ilmos. Srs. Anônimos,

    Alguns de seus posts me fazem perder o sono tamanha a genialidade. Esse último sobre o destino dos restos-mortais dos deuses-burocráticos é simplesmente lindo! Por favor passem a assiná-los...

    Att

    O Burrocrata

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  10. A magia de toda essa história está em que o orgulho está em se reconhecer boy, negando-se a condição burocrática. E afinal foi mesmo isso o que se sucedeu nesse episódio.. por aquele momento o burrocrata julgou ser melhor a condição de office-boy, por apreço a alguma dignidade, e calou-se para nao relembrar sua condição de condenado eterno diante do diretor da prisão. O servidor público é como que uma alma penada. Agora, de fato, ser boy deve ser mais emocionante que a vida vegetativa da repartição. Como que um verdadeiro prince of persia, um rintintin a se aventurar pelos sombrios e mal-assombrados corredores de castelos e pirâmides, com múmias e tantas outras criaturas semi-humanas à solta.
    Acho que uma criança quando ainda criança, se tiver de escolher, dirá querer ser um aventureiro, indiana jones, doctor grant, que é parte de ser office-boy.. nunca um oficial de gabinete ou quantas criativas denominações existam para dizer o vagabundo. "Papai, quero ser oficial de secretaria quando crescer.." Mate essa criança, não é uma criança.. é um monstro!

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  11. Ilmo. Sr. Balboa,


    Acabo de ler seu comentário e uma lágrima agora me desce o rosto.

    Você foi fundo num dos pontos sobre o qual mais me pego pensando ultimamente: "a vocação de burocrata". Realmente é um tema que merece tratamento apartado...

    É estranho olhar para trás e ver que algo em algum ponto do passado deu errado... o plano não era esse.

    A melancolia desse retrospecto é muito bem ilustrada pela cena final de "A Herança de Mr. Deeds", onde o personagem magistralmente vivido por Adam Sandler, diante de um público de yuppies frustrados, os questiona sobre "o que queriam ser quando crescer ?"...

    Caro Balboa, devo admitir que nem quando criança muito menos agora me agrada a idéia de exercer minha vocação de office-boy...

    Entretanto ao inconscientemente deixar-me passar por boy perante a mais alta autoridade, percebo que a criança dentro de mim resiste bravamente.

    Isso enche meu coração de alegria!


    Att.


    O Burrocrata

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