sexta-feira, 7 de maio de 2010

Um cadáver, um cristal



O cadáver no título não é o do Velho...

O que ora jaz inerte não é o "difunto" do nosso elegante herói em mocassins ... do nosso tirano das casimiras desabotoadas... do nosso eremita dos pégasos alados...

O Sr. R ainda está vivo... debilitado e agonizante... porém vivo e recebendo pelos cofres do Estado...Inutilmente, sua mesa aguarda, vazia e triste, o dia de seu retorno... Mas sabemos todos que ele não volta mais a visitar os expedientes. Pelo menos não nessa encarnação!

Ainda assim, menos por pudores de discrição do que por lealdade ao testamento do velho, não abri aquela gaveta... a chave que me foi confiada aguarda ansiosa o dia choroso em que aquele corpo raquítico descer, a toque de caixa, os sete palmos que o esperam...

Tenho em mim a firme convicção de a tácita e derradeira vontade do Sr. R ao me confiar as chaves é que seja aguardado o dia de sua desencarnação para a abertura da famigerada gaveta.

Em sonhos, contorço-me em sentimentos confusos, vislumbrando por uma gretinha os terrores cósmicos ou os júbilos celestiais que aquela humilde chavinha de plástico pode libertar: uma prova de um imenso esquemas de corrupção envolvendo figurões engravatados... uma jóia anciã pertencente a dinastias remotas extraviada em meio aos fungos da Repartição... perversões sexuais de um tarado mental... entorpecentes à espreita...


Por aqui tudo é possivel...


Nas intermitências da rotina, a Repartição, engenhosa e dissimulada, aguarda pacientemente a hora e a vez pregar o horror na testa do mais destemido, acalentado e indolente burocrata, fazendo-o encolher arripiado por debaixo de uma mesa em courvim e desabar a chorar feito criança espantada.

Por aqui nada é impossível... Afinal, como rezou um poeta, toda porta é viagem...

E mesmo sabendo que, em meio ao tédio e à indolência do expediente, infinitas possibilidades nos aguardam, na maioria das vezes não estamos preparados para lidar com o que nos deparamos...

Senão vejamos...

Às sextas-feiras pela tarde, é comum os servidores confiarem ao boy, paladino do lanche, o nobre desígno de comprar um pacote de pão e uma coca super-litro... Daí todos comem festivamente sob o signo do fim de semana... Desse lanche restam sobras....que atravessam o sábado... que atravessam o domingo... e que ao final desse ciclo se encontram segunda-feira sobre a pia da cozinha à mercê dos vagabundos que não costumam desfrutar o café da manhã em casa.

Pão murcho... coca quente... e o café gelado... a essa soma azeda chamam "o morto"!

Uma das primeiras coisas que se escuta pela manhã das segundas-feiras é uma voz sonolenta rondando a cozinha: "vou comer o morto!" E é justamente isso o que se espera ver ao abrir a porta da cozinha nessas horas: um infeliz estilo zumbi comendo pão murcho com café gelado.

No entanto, como eu disse anteriormente, a porta da cozinha me reservara outra viagem naquela manhã de segunda...

Abri-a e estava tudo escuro... as persianas da janela, para meu espanto encontravam-se fechadas... Foi com dificuldade que minha visão, ainda turva e remelenta de sono, se adaptou àquela escuridão... O breu seria completo se não fossem as luzes que escapavam para dentro através das gretas da persiana... Meu primeiro impulso foi abrir a janela... mas antes que eu o fizesse... deti-me com um vulto à minha frente...

Pelos volumes do corpo não hesitei: era a Sra. V...

A gorda enfileirara 4 cadeiras e sem pudor algum deitou, de barrigão para cima, seus 120 quilos sobre a maca improvisada... Ou ela não sentira minha presença, ou me ignorara deliberadamente, pois mantinha os olhos cerrados...

A cena remetia a um velório: um enterro de um cadáver gordo estirado sobre um caixão...

Mas o que signifava aquele despropósito afinal? A Sra. V de olhos fechados... tranquila... estirada sobre as cadeiras... os braçinhos roliços cruzados sobre o peito...

Só a pude entender quando, acostumado à escuridão do cômodo, vislumbrei a chave para esse enigma: um cristal jazia sobre a barriga flácida da Sra. V.... uma singela pedra envolta naquele pântano gelatinoso...

Tratava-se de mais uma bizarrice no extenso rol de esoterismos da Sra. V: Cromoterapia... Anjos Cabalísticos... Reike... I Ching... Paulo Coelho... Numerologia Astal... Cavaleiros Templários...

E agora, algo realmente mágico e trancedental:

A técnica ancestral do cristal na barriga!

Ao sair fiz questão de bater forte aquela porta atrás de mim... Minha esperança é que aquele baque surdo pudesse fazer a vagabunda acordar para a vida...

Mas como disse o poeta, cada porta é uma viagem, certo? Pois então, se for esse mesmo o caso só nos resta ser tolerantes para com os outros...

Passei pela mesa da Sra. V e não pude deixar de notar, com uma ponta de enervamento, na nova aquisição para sua biblioteca esotérica: "Alegria: o segredo da beleza"...

Fiz muita força para me lembrar do ensinamento do poeta... Mas aqui na Repartição não somos poetas... tampouco inclinados à tolerância... o sentimento que dá o tom dos expedientes é a frustração... e a ela todos acabamos sucumbindo...

-"Alegria: o segredo da beleza" - uma pinóia!

Ela é triste... e feia por completo! - destilei baixinho e envergonhado comigo mesmo essa agressão gratuita àquela simpática fada gorda!

Ela não merecia isso.. Ela é uma pessoa boa!

Ela merecia ser magra... bonita... e feliz!

Quem sabe um dia não apareça alguém por aqui que saiba dar o devido valor à aura mágica dessa mulher?

Aí ela se revestiria em luzes astrais... e sairia voando pela janela como um vaga-lume inchado...para nunca mais voltar.
 
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