domingo, 17 de maio de 2009

No covil dos morcegos


A tentativa de chegar à Cantina do prédio anexo pelo quintal tinha me custado os sapatos... meu mocassin de burocrata já havia sido encardido por completo pela lama do descampado.

Eu bem podia ter evitado todo os inconvientes dos fundos: a lama, o matagal, os mosquitos da dengue...

Eu poderia ter saído pela porta da frente num agradável passeio até a lanchonete da esquina... passar pela banca de revistas... zanzar pelos corredores do supermercado... fazer meia dúzia de jogos na loteria... pagar uma conta de luz... tudo isso antes ou depois de beber um mate-couro e comer uma esfirra.

Mas infelizmente hoje eu deveria me contentar com a Cantina do prédio anexo.

Lá era um dos poucos lugares nessa cidade em que se ainda vende fiado... e como eu havia esquecido a carteira em casa, não me restava outra escolha... Ou eu enfrentava os salgados horrorosos da Cantina... ou passava o resto do expediente bebendo café de barriga vazia.

Passei então pelo quintal e cheguei lá...

A Cantina era um grande salão mal iluminado e úmido... escondido no final de um corredor remoto... o teto despencava em infiltrações... Era um lugar esquecido pelos burocratas... raríssimas vezes algum vagabundo dava caras por lá...

Como eu, todos preferiam passear na hora do lanche... O fato da Cantina ser um lugar deserto contribuiu para que, com o tempo, aquele espaço virasse um ponto de encontro para os boys, faxineiros e vagabundos dos serviços geraes...

Era para lá que essas pessoas, não propriamente burocratas, mas tão avessas ao trabalho quanto nós, passavam horas escondidas... tagarelando... gritando impropriedades... contando piadas e lendo o Super do dia anterior...

Fui seguindo pelo corredor e pude ouvir o burburinho que vinha da Cantina...

Assim que entrei, pude contar lá dentro cerca de vinte vagabundos... o clima de vadiagem era total... estavam todos escorados pelas paredes ou sentados no chão...

Ao me virem entrar, todos calaram-se... mesmo de mocassin sujo minha presença chegou a impor certo respeito...

O clima era tenso... eu sabia que não era bemvindo ali...

E eu sabia que assim que pedisse um salgado fiado os meus 15 segundos de respeito cairiam por água abaixo e eu seria motivo de escárnio na boca desse bando de vadios até o dia da minha aposentadoria...

Mas o inesperado aconteceu...
Entrou pela porta da Cantina um boy desavisado de minha presença... o vagabundozinho vinha andando malacozamente... balangando forçadamente os braços por detrás das costas e pisando firme... pensando abafar:

- Fala morcegada! - gritou para a Cantina.

O silêncio fez o clima ainda mais tenso...o constrangimento abateu-se sobre todos... e aos poucos a Cantina foi esvaziando envergonhadamente... cabisbaixa...

Na verdade aquele boy maloqueiro havia me feito um favor. Agora poderia pedir um salagado fiado sem olhares reprovadores.
Aproximei-me da moça que atendia no balcão... Ela tinha os olhos esbugalhados numa cara de poucos amigos. Antes que eu dissesse qualquer coisa ela foi logo disparando:

- Cambada de vagabundo! Vai arrumar uma privada para desintupir! Morro de raiva desse povo! E fico com pena de vocês servidores públicos que morrem de trabalhar e nem tempo tem de vir aqui fazer um lanche tem... Enquanto isso esses vagabundo ficam aqui o dia inteiro morcegando... até colchão no chão pra dormir eles colocam...

O ódio e a injustiça sentidos por aquela mulher eram reais e estavam esbugalhado em seus olhos... E a minha vergonha de burocrata estava estampada na minha cara... mas ela não via.
Ela realmente acreditava que nós burocratas trabalhavamos?
Ou seria a mente dela que, no afã de autopreservar a sanidade, alucinara subterfúgios para esconder o fato de que ela era a única alma em todo o prédio que pegava no batente...
Não era possível que a moça esbugalhada tivesse tamanha fé no zelo e profissionalismo dos burocratas.
Ela estava mesmo doente... a pobre moça sofria de febris alucinações... Tive vontade de abraçá-la... de dizer a ela que as coisas iriam mudar... que alertaria o Diretor e ele os colocaria todos no olho da rua... mas não pude.

Olhei para a coxinha que transbordava na gordura, para o molho de pimenta que estava sobre o balcão e para os olhos da moça que me fitavam à espera de uma resposta confortadora.

Mas a única coisa a meu alcance que poderia consolá-la era, com a ajuda daquela coxinha... daquela pimenta... e de algum rolo de papel higiênico, dar àquela morcegada um diarréico trabalho para fazer.

7 comentários:

  1. Mas comeu ou não comeu fiado??????????/

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  2. Credo!!!Está parecendo que a cantina saiu de qualquer filme tipo (albergue), dá medo...
    Queria ver se a cantina fosse um café iguais ao cafés euroupeus, os coitados dos faixineiros não teriam lugar para vadiar....

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  3. Se esse conto tivesse sido escrito antes de "Aprendiz de vagabundo" (no qual um boy é demitido após ser flagrado se masturbando na sala de um juiz), eu poderia suspeitar (com notável crédito)que se tratava do mesmo indivíduo.

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  4. Ilmos. Srs. Anonimos,

    1)Não só comi fiado como, enquanto saboreava a coxinha, fui desafiado por um faxineiro para uma partida de xadrez que se estenderia pelo resto do expediente.

    2)Entendo que você faça a associação entre o boy de "Aprendiz de vagabundo" e o desse conto. Mas são pessoas diferentes. É preciso atentar que, apesar do uniforme, os boys não são todos iguais. Há os boys-maloqueiros, os boys-cybermanos, os boy-emos, os boys-boiolas, etc.

    Att.

    O Burrocrata

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  5. Há também, então, os boys-masturbadores.

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  6. Se comeu fiado me dou como satisfeito!rs

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  7. A menção à "morcegada" me fez relembrar um episódio interessante ocorrido na minha repartição.

    É fato que lá existe um viés acusatório de vagabundagem entre os funcionários de gabinete (recrutamento amplo) e os concursados e vice-e-versa. Os de gabinete, fundamentando-se na estabilidade dos outros para justificar sua tese, e os outros acusando o número de funcionários dos gabinetes para diminuir a quantidade de trabalho efetivo deles. E todos arrumando mais argumentos para atacar os "rivais" e passar o tempo com a menor produtividade possível.

    Certo dia, uma funcionária de gabinete ligou para a central de segurança, onde estão lotados apenas funcionários efetivos, dizendo desesperada que havia um morcego em sua sala.

    O inspetor de segurança, pensando rapidamente sobre aquilo, tentou se lembrar das saus atribuições e percebeu que entre elas não havia menção a "matar morcegos" ou "capiturar morcegos" ou algo do tipo. Assim sendo, viu na situação uma boa oportunidade de alfinetar a rivalidade e disse:

    "Morcego? No gabinete? E qual é o número de matricula dele?"

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