sábado, 6 de junho de 2009

Visão do paraíso


Foi com espanto que os vagabundos da Repartição receberam a notícia de que a Sra. V, a vagabunda que fazia tudo errado, nunca mais daria as caras por lá.

O chefe havia dado a notícia rapidamente e voltado à sua sala, onde continuou se entretendo com pequenos trabalhos inventados. Por sua vez, os outros burocratas presentes reuniram-se na cozinha e puseram-se a fofocar entre goladas de café e farelos de biscoito água e sal.

A reunião vagabunda que começara com um furdúncio de protestos indiganados, evoluíra agora para suspiros e cochichos secretos... velório burocrático.

A atmosfera era de culpa... É que só agora depois da notícia do frenético chefe percebeu-se que a há quase um mês Sra. V não vinha vadiar na Repartição... Uma alma sequer acusara sua ausência... Tamanha era sua importância para o lento caminhar dos procedimentos cartorários que ninguém perguntara por ela... Sua mesa encontrava-se agora exatamente como a um mês atrás: vazia...

Os vagabundo encheram novamente os copos com café e, corroídos pela culpa, inventavam elogios capegas à Sra. N: "Ela era uma ótima servidora... muito prestativa... nunca se atrasava... nunca deixava faltar tinta às almofadas de carimbo... tinha sempre um clipe à mão...". E terminaram dissimulando por unanimidade que sentiriam falta dela.

Contemporizada a culpa nos corações e subido o café às cabeças, algumas perguntas vieram à tona...

Como pode um modelo de vagabundagem daqueles que era a Sra. N ter sido aposentada por invalidez em função de L.E.R?

Ora, esta era doença de gente trabalhadora... estressada... frenética... A menos que tal patologia fosse também causada por preguiçosa paralizia das juntas, a Sra. V não poderia a ter contraído... Haveria a pacata Sra. V aplicado o perigoso golpe do diagnóstico comprado?

Era uma possibilidade... nunca se deve subestimar a força com a qual os burocratas perseguem os sonhos da aposentadoria precoce por invalidez.

Fuxicar a vida alheia é para um vagabundo mais do que um hábito... é quase um dever. No entanto, mais importante do que desvendar o estranho caso do primeiro servidor público a contrair L.E.R., era resolver a disputa pela mesa da Sra. V.

Se a aposentadoria por invalidez é um longínquo sonho ... a mesa da Sra. V passou a ser uma sonhada realidade possível a todos os vadios dali...

Era a visão do paraíso burocrático... Uma mesa em courvim limpa ... longe do balcão de atendimento e de estridentes aparelhos telefônicos... completamente escondida por uma pilastra dos bisbilhotamentos do chefe... ventilada de frente por uma ampla janela que convidava um solzinho preguiçoso pela manhã... estirada ao lado do bebedouro.... e logo abaixo de uma verdejante samambaia, que remete a alma mais deseperada e frustrada ao sono e à paz interna.

Todos inclusive eu manifestaram vontade em tomar posse da mesa deixada pela Sra. V.

Mas eu sabia que minhas chances eram poucas... não gozava de prestígio entre os burocratas... e não estava disposto a ingressar uma longa negociação junto àqueles vagabundos.

O velho,tarado e diabético, o Sr D. preferiu continuar em sua mesa próxima ao balcão... Assim poderia conferir mais de perto as advogadas que se aproximavam e com alguma sorte engatar uma constrangedora conversa mole.

A disputa ficou então entre dois vagabundo.

Um, para angariar apoio, propunha bancar o almoço de toda a Repartição durante 2 meses... O outro se dipunha a deslocar duas linhas telefônicas para a mesa, aliviando os companheiros da irritante tarefa de atendê-los.

A Repartição dividiu-se entre esses dois lados. Estavam empatados. E faltava ainda um burocrata a opiniar...

Como não poderia deixar de ser, a decisão de minerva estava sobre os ombros do mais experiente e sábio: O Sr. R...

O elegante dândi burocrático fumava no quintal alheio ao furdúncio todo causado pela controvérsia da mesa perfeita.

Chamado a opinar veio andando ereto e a passos lentos e graciosos rumo à mesa onde todos encontravam-se reunidos. Ao passar pela cozinha encheu um copo de café e entrou esfumaçando o ambiente com seu cigarro.

As partes expuseram seus argumentos e seguiu-se um longo silêncio até que o Sr. R começasse a deliberar...

Olhando fixo a mesa disputada disse solenemente ao vagabundo que propusera subornar os colegas com almoços pagos: " Nem tudo nesta vida está a venda!".... E ao que havia se proposto a atender as duas linhas que seriam deslocadas para a mesa: "Você está fora do seu juízo? Pretende macular a tranquilidade desta mesa perfeita com dois telefones?".

E prolatou sua sentença que por natureza era irrecorrível: "Eu sou o mais antigo de casa, e fico então com a mesa!"

Para selar a decisão, o Sr. R, num gesto simbólico, abre a gaveta e joga lá dentro seu maço de cigarros.

Nenhum questinamento sobre a decisão surgiu.

A questão da mesa estava pacificada.

O paraíso tinha um novo dono.

8 comentários:

  1. Muito legal este viu!!! Gostei!!!

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  2. Muito bom, seus dotes de cronista estão evoluindo a olhos vistos

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  3. perfeita essa crônica! Realmente a palavra paraíso tem um contexto bem relativo...depende sempre de quão escroto é o inferno onde se está...

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  4. Ilmos Srs.

    Peço desculpas pelas demoras na atualizações.

    É que em função de um tratamento de saúde ao qual ora me submeto, recebi orientações do médico a evitar fortes emoções e lembranças dolorosas.

    Inclusive estou afastado da Repartição por licença médica até o final da semana.

    Mas nem por isso os deixarei sem o post semanal. Segunda-feira ele estará lá aguardando dolorosamente por vocês.

    Att.

    O Burrocrata

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  5. Afastamento para tratamento de saúde? Hummm... sinistro...Desconfio dessa justificativa para o atraso na atualização das postagens. Nosso nobre autor deve é estar articulando uma mutreta com o setor de perícia médica, a fim de conseguir a mesma graça que a Srª V.
    Ele perdeu a mesa. Entretanto, ardiloso como Alex, o Capeta do Vilarinho, planeja alcançar o longínquo sonho: vagabundo se aposentar por esforço repetitivo. De fato há atividades repetitivas na rotina vagabunda das repartições, mas, esforço! Lesão, então, só se for de coçar o saco (homens) ou ferir as cutículas (mulheres).

    Glowsmek, o monstro.

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