domingo, 21 de junho de 2009

Senhor dos destino


Passam-se burocraticamente os anos... trocam-se as chefias... trocam-se as mesas em courvim e as cadeiras giratórias.... aumentam as minhas dores nas costas. Certas coisas mudam. Mas aprendi desde cedo na carreira que a há coisas que não mudarão nunca. Há coisas que encerram a própria essência angustiada do burocrata: vazios, inércias; ausências; silêncios; carimbos e ofícios...

É preciso adaptar-se delicadamente às lerdezas da Repartição ou sofrer as chagas de uma eficiência estéril... Perdendo a dignidade na tentativa de se mostrar útil... Esse é o caso do nosso pobre chefe.

Desde que a Seção de Contratos lhe enviou um ofício implorando para que nao lhes fossem mais encaminhados Relatórios que não fossem requisitados, que não tinham motivos para existir, e que ocupavam inutilmente espaço na sala de arquivos, o chefe deprimiu-se e não vem trabalhar.

Ele não vem trabalhar e por consequência a Repartição fica como eu a encontrei hoje...

Vazia.

As mesas vazias... o balcão vazio... o secar de uma almofada de carimbo ao relento... e um mosquito que hiberna sobre uma impressora encardida.

Não havia ninguém.

Mas eu sabia muito bem onde todos eles estavam. Atravessei as mesas solitárias, passei pela cozinha e já pude ouvir os burburinhos nos fundos. Os vagabundos se reuniam em torno de uma mesa plástica... alguns de pé, outros sentados... mas todos igualmente resguardados sob a sombra daquela árvore feia e mal cuidada... a única em todo o descampado poeirento do quintal.

Puderam me ver chegando. E perceberam meu olhar inquisitor de quem mesmo sem moral nenhuma para questionar vagabundagens, ainda que saber: "Por que vocês não estão lá dentro?"

Antes que eu abrisse a boca para perguntar qualquer coisa a Sra. P foi logo se adiantando:

"Disseram que a caixa d´água está transbordando e o teto ameaça ceder sobre nossas cabeças... nessas condições não dá para trabalhar."

E voltaram a tagarelar alegremente tal qual crianças desfrutando o horário vago na falta de um professor ao compromisso.

Eu peguei um café e fiquei por lá a rondar os vagabundos. Aqueles assuntos realmente não me interessavam: receitas de canjiquinha e arroz-doce; relatos de gloriosos feriados no hotel-fazenda; consultas ao médico; diagnósticos desencontrados; e cânceres em família. O único ali que poderia me entreter era o Sr. R- que mais uma vez havia atestado sua sagacidade saindo mais cedo do expediente.

Ficar ali era perda de tempo.

Resolvi entrar por dois motivos: 1) Talvez ver de perto a caixa d´água explodir e ser soterrado em meio aos escombros da Repartição fosse a coisa mais emocionante que pudesse acontecer comigo em toda a minha vida de burocrata; 2) Desde que eu botei os pés na Repartição hoje, eu vinha sentindo meu coração palpitar dizendo que algo de importante estava para acontecer.

Entrei e sentei-me ao balcão.

Apurei o ouvido para qualquer baruho estranho vindo do teto que anunciasse a catástrofe. Mas eu nada ouvia.

Fiquei lá a tarde inteira à espera de alguém... um advogado insolente com um falar difícil... um cidadão comum que viesse humildemente pedir uma informação.

Mas ninguém veio. Os vagabundos também não vieram.

Já adentrava o fim de expediente... o sol se punha... tudo ficara ainda mais triste... o café ficava mais frio... e eu preparava para deixar o balcão quando ele entrou.

Era alto... sua presença impunha... e mesmo tentando, não conseguia dissumilar que ele não era. Mesmo debruçando sobre o balcão e escondendo o rosto envergonhadamente por trás dos óculos escuros, não pude deixar de reconhecê-lo.

Por respeito ao seu esforço, fingi não saber quem ele era. Fingi que não se tratava de um famoso ator que há muito andava desparecido do horário nobre.

Antes poderoso; rodeado por lindas mulheres; dono de um grande ego semanalmente massageado no Faustão... Agora cabisbaixo; feito um cachorro assustado; implorando por urgência na certidão.

O que fazer numa situação dessas? Qual é a coisa certa?

Compadecer de seu sofrimento, driblar todos esses procedimentos burocráticos patentemente inúteis e dar-lhe logo a certidão? Ou por respeito ao brasileiro médio, submetê-lo aos mesmos trâmites que tanto desespero causam às pessoas comuns?

A vida biônica de burocrata nos impõe dilemas para os quais nossos corações humanos não estão preparados para enfrentar.

O homem não é um número... a lei não é senhora de nossos destinos.

Enquanto eu pensava nessa coisas ele irrompeu impacientemente do outro lado do balcão:

"Dá para agilizar? Tenho mil e um compromissos para ontem..."

Ele tornara as coisas mais fáceis...

Dei-lhe então a lista com todos procedimentos para se obter a certidão... imprimi 3 guias de recolhimento a serem pagas no banco... e orientei-lhe que voltasse daqui a 1 semana.

E aqui na Repartição até hoje o teto ameaça despencar.

5 comentários:

  1. Talvez você tenha sido um pouco rude. Se ele aparecia no Faustão, vai que era no quadro "se vira nos trinta"? Nesse caso, teria que agilizar mesmo...

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  2. Olha, de fato, o camarada pode ter facilidado a resposta de qualquer burocrata, claro, dependendo do tom e da polideza com que manejou a frase "Dá para agilizar? Tenho mil e um compromissos para ontem..." ... Mas essa revanche do vegetal sobre a pessoa de vida mais ou menos interessante, que é normal às pessoas que a passam fora de repartições, talvez nao seja o caminho mais duradouro para a felicidade dos burocratas. No momento talvez o gozo seja grande, e motivado pelo pensamento de que ao menos assim, como obstáculo, se fará notar. Mas essa vaidade toda pra quê, não escolheram eles o caminho da televisao, da fama, ainda mais em vagabundos cuja visao e realizacao do mundo se inscreve nos poucos metros quadrados de sua reparticao. E aqui eu os alerto, Burocratas, que o verdadeiro Senhor do Destino no uso da máxima “os humildes serão exaltados e os soberbos serão humilhados” o faz numa realidade com as consequências semelhantes a da iniciativa privada. Na vida fora da repartição, nada é eterno..

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  3. Companheiros, reconheçam q falta a nós a verdadeira "sabedoria burrocrática"...vcs estão discutindo um milhão de coisas e se esquecendo da questão mais importante de todas: "o que teria feito o Sr.R nessa situação?"

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  4. acho que o blog tá tomando o mesmo rumo de uma reparticao pública..

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