sábado, 30 de janeiro de 2010

O pégaso do peito de aço


Depois de alguns meses de férias chega minha hora de voltar à Repartição!

Fato é que essas férias foram um hiato absoluto em minha vida burocrática... Para mim era como se a Repartição nunca houvesse existido... e tenho certeza que para a Repartição a recíproca era verdadeira.

Devo, no entanto, confessar, que o longo afastamento da rotina burocrática não me fizera bem...

É que um burocrata apartado da Repartição, de seus carimbos, de seu café, de sua mesa vazia, perde seu referencial...

A condição vagabunda nos atrela de tal forma que, quando não estamos exercendo de forma plena nossa inutilidade padecemos de uma angustiante crise existencial.

Foi então que entre ser inútil em casa e ser vagabundo na Repartição decidi, com o coração dilacerado, regressar a meu lugar de direito...

Eu havia acordado naquele dia com uma vontade louca de bater mil carimbos... de grampear um maço de cinquenta folhas em um golpe só... e quem sabe até redigir um elegante ofício para algum lugar... Calcei, então, meus velhos mocassins, vesti minha blusa de casimira, soquei-a em um movimento brusco para dentro das calças e apressado tomei o rumo da Repartição...

Não poderia continuar vivendo fingindo não ser o que eu era: um burocrata, um burocrata! - Assim segui exclamando orgulhoso.

Para mim hoje seria apenas um aquecimento para a volta à rotina... a tarde seria calma, lenta e vagarosa... eu tomaria café cordialmente com os velhos vagabundos, perguntaria pela saúde da família de todos e voltaria para casa...

Mas eu estava enganado...

Ao abrir a porta me deparei com a Repartição empolvorosa... os desocupados todos de pé... alvoraçados... enrigeciam as peles flácidas em risadas perversas... um escarcéu completo!

Que zombarias teriam o poder de sublevar esses vegetais, tirando-os da inércia de suas mesas e lançando-os naquele vórtice alucinado de deboche?

A resposta veio com a Sr. V, a fofoqueira, lerda e indolente... Tão logo a pachola me viu veio arrastando suas varizes e o seu blusão colorido e esvoaçante em minha direção... apertou os olhinhos maldosos nas gorduras da face e soltou a linguinha venenosa:

- O Sr R... o Sr. R...

O que teria feito o velho agora? - pensei já me desmanchando de rir por antecipação... Que bela homenagem! Logo no dia de minha volta à burocracia o velhote me presenteara com uma das suas... teria ele humilhado o chefe mais uma vez? distribuído tapa de luvas ao juiz? ameaçado advogados?

Mais uma vez eu estava enganado...

A lerda teceu a estória completa... Ela disse que constatara hoje na pele do Sr. R aquilo que nunca nenhum de nós em todos esses anos de burocrática convivência jamais pôde conceber... nem mesmo em nossos sonhos mais selvagens...

É que, de acordo com a fofoqueira, quando o Sr. R fumava distraído no quintal, um vento entrou pelo colarinho levantando sua blusa meio desabotoada, fazendo o sol fez refletir a imagem estampada em seu peito: um pégaso prateado!
Não pude acreditar... Então o velhote ostentava um pégaso prateado tatuado no peito?!

Mas justo o Sr. R? Por quê? O Sr. R. , último exemplar da velha guarda da burocracia vagabunda... seu silêncio, seu niilismo, sua completa falta de respeito por qualquer forma de autoridade... sua sobriedade nas horas mais críticas... seu fino desprezo pela inapetência mental dos companheiros... sua elegância...

E agora um pégaso prateado tatuado no peito ameaçando sua reputação!

Mas afinal o que representa uma chaga desbotada no peito diante do espírito desse homem? A carne é fraca e tatuada; mas o espírito é forte e sem máculas... isso é o que importa no fim das contas... não é?!

Se ao menos o velho estivesse presente para se defender...

O deboche esmoreceu até dar lugar ao silêncio e à melancolia usual. A luz da tarde já despontava pelas janelas... e eu seguia alucinado enxergando o pégaso prateado pairando sobre as mesas, os computadores, as impressoras, as almofadas de carimbo.

Onde estaria o Sr. R? Saberia ele dos ataques covardes que ocorriam durante sua ausência? Daria ele alguma importância ao episódio? Como teria contraído aquele pégaso?

A resposta veio à minha mesa às 17:50hs na forma do ofício nº 00. 348.661-0, esse número e seu contéudo me assombraria pelo resto dos meus dias...

Pelo ofício deixado na minha mesa por algum boy, pasmei ao tomar conhecimento da verdadeira estória... Tratava-se de um comunicado para dar ciência ao chefe da Repartição que o Sr. R estava a partir de então afastado por tempo indeterminado por motivos de saúde...

Mesmo repleto de eufemismos técnicos o ofício não escondia o tom melancólico ao falar da condição do nosso herói desenganado... Pela leitura, deprendia-se que o coração do velhote já padecia há algum tempo de uma dessas patologias degenerativas...

Um frio correu minha espinha... Enfim, consegui entender como os olhos apertados na cara gorda da Sra. V e sua ignorância puderam induzi0la em erro...

O que refletiu sob o sol não era nenhum pégaso prateado... Era na verdade o marcapasso que o Sr. R delicadamente escondia por debaixo das vestes... O nobre coração do nosso Sr. R estava condenado e a engenhoca de aço acoplada a seu peito lhe dava as forças para suportar o marasmo e o tédio da Repartição nos seus últimos dias...

Pobre Sr. R...

Aquilo tudo era loucura... As batidas do coração do Sr. R estavam contadas e o homem, por algum motivo, o velho fazia questão de passar seus últimos momentos por entre essas paredes mofadas... O que esperava ele da Repartição afinal?

Isso eu nunca soube...

Guardei em segredo, com o chefe, a explicação do pégaso prateado.

Enquanto o Sr. R gozava sua licença para morrer, os vagabundos macaqueavam... volta e outra riam do pégaso de prata no peito do Sr. R... Especulavam se fora o velhote um marinheiro renegado... um ex-dentento... ou o primeiro surfista brasileiro...

Puta mundo injusto esse!

Constrói-se uma vida ilibada para um dia um ventinho cretino e uma gorda leviana trazer tudo abaixo...

O que o Sr. R achava disso?

Certo é que sua estória não pode acabar assim... Um vento... um pégaso... uma doença cardíaca... e adeus Sr. R? Não... não poderia ser esse o fim.

Eu tornaria a ver velho mais uma vez.

Nessa última ocasião, o Sr. R se estendeu comigo durante um copo de café... Cinco minutos de café: nada menos nada mais... foi sem dúvidas nosso contato mais extenso durante todos esses anos de burocracia...

Eu estava só na Repartição... Ele veio com uma tarde fria... Estava já bastante debilitado... Andava passos curtinhos rumo à cozinha.

Venha cá rapaz!- sua voz quase sumida, mas a autoridade continuava lá.

Com dificuldades, me serviu um copo de café e, como estava completamente encurvado, disse sem me fitar os olhos :

-Vou sumir por uns tempos... quero que você assuma minha mesa... aqui está a chave da gaveta... você saberá o que fazer com o que lá encontrar... confio a você esse segredo!

Estremeci... Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele foi logo saindo... estilo mestre dos magos... abriu a porta com dificuldade e sumiu pelas escadas...

Cheguei a tempo na janela para ver seu palio cinza sair do estacionamento... O carro não deslizava macio como antes... O Sr. R. sentava no lado dos passageiros e um homem de branco guiava o carro aos solavancos pelas ruas.

Olhei a fumaçada preta que saía do escapamento subir alto até se perder em meio às nuvens carregadas

Vá em paz Sr. R, pégaso do peito de aço!

7 comentários:

  1. Bandini deve ser seu personal stylist.

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  2. Vá em paz Sr.R, e se o marcapasso perdurar, compre um carro novo!

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  3. Sr. R o primeiro surfista brasileiro!!!

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  4. e qual é afinal esse segredo que guarda a mesa do sr. R?

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  5. -
    É com alegria que volto, pela enésima vez, a este blog empoeirado e constato que - finalmente! - há alguma atividade, ainda que pífia, neste sítio.

    Agradeço ao recado que o barnabé, dono deste blog, colocou em meu quadro de avisos tuiteriano e constato com prazer, que a narrativa continua cinicamente ótima.

    Avante! Queremos ouvir mais e mais histórias excitantes e emcionantes, sobre tédios, ineficiências, anacronismos e pasmaceiras em geral.

    Alê
    -

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  6. Qual o segredo na mesa do Sr. R ??????

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