sexta-feira, 7 de maio de 2010

Um cadáver, um cristal



O cadáver no título não é o do Velho...

O que ora jaz inerte não é o "difunto" do nosso elegante herói em mocassins ... do nosso tirano das casimiras desabotoadas... do nosso eremita dos pégasos alados...

O Sr. R ainda está vivo... debilitado e agonizante... porém vivo e recebendo pelos cofres do Estado...Inutilmente, sua mesa aguarda, vazia e triste, o dia de seu retorno... Mas sabemos todos que ele não volta mais a visitar os expedientes. Pelo menos não nessa encarnação!

Ainda assim, menos por pudores de discrição do que por lealdade ao testamento do velho, não abri aquela gaveta... a chave que me foi confiada aguarda ansiosa o dia choroso em que aquele corpo raquítico descer, a toque de caixa, os sete palmos que o esperam...

Tenho em mim a firme convicção de a tácita e derradeira vontade do Sr. R ao me confiar as chaves é que seja aguardado o dia de sua desencarnação para a abertura da famigerada gaveta.

Em sonhos, contorço-me em sentimentos confusos, vislumbrando por uma gretinha os terrores cósmicos ou os júbilos celestiais que aquela humilde chavinha de plástico pode libertar: uma prova de um imenso esquemas de corrupção envolvendo figurões engravatados... uma jóia anciã pertencente a dinastias remotas extraviada em meio aos fungos da Repartição... perversões sexuais de um tarado mental... entorpecentes à espreita...


Por aqui tudo é possivel...


Nas intermitências da rotina, a Repartição, engenhosa e dissimulada, aguarda pacientemente a hora e a vez pregar o horror na testa do mais destemido, acalentado e indolente burocrata, fazendo-o encolher arripiado por debaixo de uma mesa em courvim e desabar a chorar feito criança espantada.

Por aqui nada é impossível... Afinal, como rezou um poeta, toda porta é viagem...

E mesmo sabendo que, em meio ao tédio e à indolência do expediente, infinitas possibilidades nos aguardam, na maioria das vezes não estamos preparados para lidar com o que nos deparamos...

Senão vejamos...

Às sextas-feiras pela tarde, é comum os servidores confiarem ao boy, paladino do lanche, o nobre desígno de comprar um pacote de pão e uma coca super-litro... Daí todos comem festivamente sob o signo do fim de semana... Desse lanche restam sobras....que atravessam o sábado... que atravessam o domingo... e que ao final desse ciclo se encontram segunda-feira sobre a pia da cozinha à mercê dos vagabundos que não costumam desfrutar o café da manhã em casa.

Pão murcho... coca quente... e o café gelado... a essa soma azeda chamam "o morto"!

Uma das primeiras coisas que se escuta pela manhã das segundas-feiras é uma voz sonolenta rondando a cozinha: "vou comer o morto!" E é justamente isso o que se espera ver ao abrir a porta da cozinha nessas horas: um infeliz estilo zumbi comendo pão murcho com café gelado.

No entanto, como eu disse anteriormente, a porta da cozinha me reservara outra viagem naquela manhã de segunda...

Abri-a e estava tudo escuro... as persianas da janela, para meu espanto encontravam-se fechadas... Foi com dificuldade que minha visão, ainda turva e remelenta de sono, se adaptou àquela escuridão... O breu seria completo se não fossem as luzes que escapavam para dentro através das gretas da persiana... Meu primeiro impulso foi abrir a janela... mas antes que eu o fizesse... deti-me com um vulto à minha frente...

Pelos volumes do corpo não hesitei: era a Sra. V...

A gorda enfileirara 4 cadeiras e sem pudor algum deitou, de barrigão para cima, seus 120 quilos sobre a maca improvisada... Ou ela não sentira minha presença, ou me ignorara deliberadamente, pois mantinha os olhos cerrados...

A cena remetia a um velório: um enterro de um cadáver gordo estirado sobre um caixão...

Mas o que signifava aquele despropósito afinal? A Sra. V de olhos fechados... tranquila... estirada sobre as cadeiras... os braçinhos roliços cruzados sobre o peito...

Só a pude entender quando, acostumado à escuridão do cômodo, vislumbrei a chave para esse enigma: um cristal jazia sobre a barriga flácida da Sra. V.... uma singela pedra envolta naquele pântano gelatinoso...

Tratava-se de mais uma bizarrice no extenso rol de esoterismos da Sra. V: Cromoterapia... Anjos Cabalísticos... Reike... I Ching... Paulo Coelho... Numerologia Astal... Cavaleiros Templários...

E agora, algo realmente mágico e trancedental:

A técnica ancestral do cristal na barriga!

Ao sair fiz questão de bater forte aquela porta atrás de mim... Minha esperança é que aquele baque surdo pudesse fazer a vagabunda acordar para a vida...

Mas como disse o poeta, cada porta é uma viagem, certo? Pois então, se for esse mesmo o caso só nos resta ser tolerantes para com os outros...

Passei pela mesa da Sra. V e não pude deixar de notar, com uma ponta de enervamento, na nova aquisição para sua biblioteca esotérica: "Alegria: o segredo da beleza"...

Fiz muita força para me lembrar do ensinamento do poeta... Mas aqui na Repartição não somos poetas... tampouco inclinados à tolerância... o sentimento que dá o tom dos expedientes é a frustração... e a ela todos acabamos sucumbindo...

-"Alegria: o segredo da beleza" - uma pinóia!

Ela é triste... e feia por completo! - destilei baixinho e envergonhado comigo mesmo essa agressão gratuita àquela simpática fada gorda!

Ela não merecia isso.. Ela é uma pessoa boa!

Ela merecia ser magra... bonita... e feliz!

Quem sabe um dia não apareça alguém por aqui que saiba dar o devido valor à aura mágica dessa mulher?

Aí ela se revestiria em luzes astrais... e sairia voando pela janela como um vaga-lume inchado...para nunca mais voltar.

sábado, 30 de janeiro de 2010

O pégaso do peito de aço


Depois de alguns meses de férias chega minha hora de voltar à Repartição!

Fato é que essas férias foram um hiato absoluto em minha vida burocrática... Para mim era como se a Repartição nunca houvesse existido... e tenho certeza que para a Repartição a recíproca era verdadeira.

Devo, no entanto, confessar, que o longo afastamento da rotina burocrática não me fizera bem...

É que um burocrata apartado da Repartição, de seus carimbos, de seu café, de sua mesa vazia, perde seu referencial...

A condição vagabunda nos atrela de tal forma que, quando não estamos exercendo de forma plena nossa inutilidade padecemos de uma angustiante crise existencial.

Foi então que entre ser inútil em casa e ser vagabundo na Repartição decidi, com o coração dilacerado, regressar a meu lugar de direito...

Eu havia acordado naquele dia com uma vontade louca de bater mil carimbos... de grampear um maço de cinquenta folhas em um golpe só... e quem sabe até redigir um elegante ofício para algum lugar... Calcei, então, meus velhos mocassins, vesti minha blusa de casimira, soquei-a em um movimento brusco para dentro das calças e apressado tomei o rumo da Repartição...

Não poderia continuar vivendo fingindo não ser o que eu era: um burocrata, um burocrata! - Assim segui exclamando orgulhoso.

Para mim hoje seria apenas um aquecimento para a volta à rotina... a tarde seria calma, lenta e vagarosa... eu tomaria café cordialmente com os velhos vagabundos, perguntaria pela saúde da família de todos e voltaria para casa...

Mas eu estava enganado...

Ao abrir a porta me deparei com a Repartição empolvorosa... os desocupados todos de pé... alvoraçados... enrigeciam as peles flácidas em risadas perversas... um escarcéu completo!

Que zombarias teriam o poder de sublevar esses vegetais, tirando-os da inércia de suas mesas e lançando-os naquele vórtice alucinado de deboche?

A resposta veio com a Sr. V, a fofoqueira, lerda e indolente... Tão logo a pachola me viu veio arrastando suas varizes e o seu blusão colorido e esvoaçante em minha direção... apertou os olhinhos maldosos nas gorduras da face e soltou a linguinha venenosa:

- O Sr R... o Sr. R...

O que teria feito o velho agora? - pensei já me desmanchando de rir por antecipação... Que bela homenagem! Logo no dia de minha volta à burocracia o velhote me presenteara com uma das suas... teria ele humilhado o chefe mais uma vez? distribuído tapa de luvas ao juiz? ameaçado advogados?

Mais uma vez eu estava enganado...

A lerda teceu a estória completa... Ela disse que constatara hoje na pele do Sr. R aquilo que nunca nenhum de nós em todos esses anos de burocrática convivência jamais pôde conceber... nem mesmo em nossos sonhos mais selvagens...

É que, de acordo com a fofoqueira, quando o Sr. R fumava distraído no quintal, um vento entrou pelo colarinho levantando sua blusa meio desabotoada, fazendo o sol fez refletir a imagem estampada em seu peito: um pégaso prateado!
Não pude acreditar... Então o velhote ostentava um pégaso prateado tatuado no peito?!

Mas justo o Sr. R? Por quê? O Sr. R. , último exemplar da velha guarda da burocracia vagabunda... seu silêncio, seu niilismo, sua completa falta de respeito por qualquer forma de autoridade... sua sobriedade nas horas mais críticas... seu fino desprezo pela inapetência mental dos companheiros... sua elegância...

E agora um pégaso prateado tatuado no peito ameaçando sua reputação!

Mas afinal o que representa uma chaga desbotada no peito diante do espírito desse homem? A carne é fraca e tatuada; mas o espírito é forte e sem máculas... isso é o que importa no fim das contas... não é?!

Se ao menos o velho estivesse presente para se defender...

O deboche esmoreceu até dar lugar ao silêncio e à melancolia usual. A luz da tarde já despontava pelas janelas... e eu seguia alucinado enxergando o pégaso prateado pairando sobre as mesas, os computadores, as impressoras, as almofadas de carimbo.

Onde estaria o Sr. R? Saberia ele dos ataques covardes que ocorriam durante sua ausência? Daria ele alguma importância ao episódio? Como teria contraído aquele pégaso?

A resposta veio à minha mesa às 17:50hs na forma do ofício nº 00. 348.661-0, esse número e seu contéudo me assombraria pelo resto dos meus dias...

Pelo ofício deixado na minha mesa por algum boy, pasmei ao tomar conhecimento da verdadeira estória... Tratava-se de um comunicado para dar ciência ao chefe da Repartição que o Sr. R estava a partir de então afastado por tempo indeterminado por motivos de saúde...

Mesmo repleto de eufemismos técnicos o ofício não escondia o tom melancólico ao falar da condição do nosso herói desenganado... Pela leitura, deprendia-se que o coração do velhote já padecia há algum tempo de uma dessas patologias degenerativas...

Um frio correu minha espinha... Enfim, consegui entender como os olhos apertados na cara gorda da Sra. V e sua ignorância puderam induzi0la em erro...

O que refletiu sob o sol não era nenhum pégaso prateado... Era na verdade o marcapasso que o Sr. R delicadamente escondia por debaixo das vestes... O nobre coração do nosso Sr. R estava condenado e a engenhoca de aço acoplada a seu peito lhe dava as forças para suportar o marasmo e o tédio da Repartição nos seus últimos dias...

Pobre Sr. R...

Aquilo tudo era loucura... As batidas do coração do Sr. R estavam contadas e o homem, por algum motivo, o velho fazia questão de passar seus últimos momentos por entre essas paredes mofadas... O que esperava ele da Repartição afinal?

Isso eu nunca soube...

Guardei em segredo, com o chefe, a explicação do pégaso prateado.

Enquanto o Sr. R gozava sua licença para morrer, os vagabundos macaqueavam... volta e outra riam do pégaso de prata no peito do Sr. R... Especulavam se fora o velhote um marinheiro renegado... um ex-dentento... ou o primeiro surfista brasileiro...

Puta mundo injusto esse!

Constrói-se uma vida ilibada para um dia um ventinho cretino e uma gorda leviana trazer tudo abaixo...

O que o Sr. R achava disso?

Certo é que sua estória não pode acabar assim... Um vento... um pégaso... uma doença cardíaca... e adeus Sr. R? Não... não poderia ser esse o fim.

Eu tornaria a ver velho mais uma vez.

Nessa última ocasião, o Sr. R se estendeu comigo durante um copo de café... Cinco minutos de café: nada menos nada mais... foi sem dúvidas nosso contato mais extenso durante todos esses anos de burocracia...

Eu estava só na Repartição... Ele veio com uma tarde fria... Estava já bastante debilitado... Andava passos curtinhos rumo à cozinha.

Venha cá rapaz!- sua voz quase sumida, mas a autoridade continuava lá.

Com dificuldades, me serviu um copo de café e, como estava completamente encurvado, disse sem me fitar os olhos :

-Vou sumir por uns tempos... quero que você assuma minha mesa... aqui está a chave da gaveta... você saberá o que fazer com o que lá encontrar... confio a você esse segredo!

Estremeci... Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele foi logo saindo... estilo mestre dos magos... abriu a porta com dificuldade e sumiu pelas escadas...

Cheguei a tempo na janela para ver seu palio cinza sair do estacionamento... O carro não deslizava macio como antes... O Sr. R. sentava no lado dos passageiros e um homem de branco guiava o carro aos solavancos pelas ruas.

Olhei a fumaçada preta que saía do escapamento subir alto até se perder em meio às nuvens carregadas

Vá em paz Sr. R, pégaso do peito de aço!

sábado, 8 de agosto de 2009

Good morning champion!


Pela primeira vez, eu morgaria o expediente pela parte da manhã...

O que Ela reservava aos vagabundos que adentravam aquelas portas mofadas nas primeiras horas do dia? Dores nas costas? Telefonemas enganados? Garrafas de café vazias? Essas perguntas me assaltaram toda a noite de sono anterior...

Tanto foi assim que a letargia da minha condição ao acordar oscilava entre a de um zumbi tetraplégico e a de um vegetal onírico...

Foi nesse estado que cheguei lá... fui o primeiro a chegar... e com a ajuda de Deus e do relógio de ponto estragado seria o primeiro a sair...

Após tantos anos, a Repartição, agora pela manhã, poderia ainda me surpreender com alguma coisa? Dificilmente... pensei!

Ela era tão feia quanto a Repartição da tarde, a única diferença estava no sol, que batia mais ameno nos computadores e impressoras... e nos pardais igualmente feios, que lhe cantavam mais alto... só isso... ha... e ela inspirava mais preguiça também...

Não fazia cinco minutos que eu chegara e minha cabeça já se escondia entre os braços, e esses apoiavam-se na mesa... era preciso dormir... eu precisava muito dormir...

Foi esse o momento em que a porta se abriu...

Entrava um simpático homem vestindo camiseta branca, short sport preto... Demorei a conceber aquela imagem... o que era aquilo que ele arrastava ruidosamente? Por acaso este homem esta empurrando uma bicicleta pela Repartição? Não pode ser... talvez seja o sono me pregando peças...

Mas era isso mesmo... ele arrastava uma bicicleta, e dependurado no guidon dessa havia um saquinho de pão.

- Opa! Bom dia! - saudou ele energicamente enquanto passava por mim.

O homem pingava suor... deixara uma trilha molhada desde a porta até a cozinha...
Tão logo guardou a bicicleta, procedeu uma série de alongamentos no quintal. E depois veio entrando na Repartição novamente com uma toalhinha branca no ombro... saudou-me com um um simpático sorriso e trancou-se no banheiro...

O que está acontecendo? Quem era aquele homem? Um burocrata feliz? Como pode alguém ousar viver a rotina burocrática como se passeasse pelo clube? Quem ele pensa que é? Não se despreza os mofos mal ilumiados da Repartição dessa forma... Por acaso o Sr. R sabia que no turno da manhã havia pessoas como esse cara?

Do banheiro eu podia ouvir o chuveiro ligado... tamanha era sua ousadia que ele usava água fria... e isso às 7 da manhã...

A porta se abriu e ele me sai lá de dentro com uma camiseta de nylon, uma calça de tactel listrada, e um tênis branquíssimo... Não mais pingava suor, mas creme dos cabelos molhados... vinha andando e vaporando um shampoo de maça verde...

Aquele cheiro me enchia as narinas e misturava-se com o de outras frutas, que agora ele cortava habilidosamente enquanto preparava uma vitamina mista na cozinha.

Aquela postura saudável me incomodou, não nego... mas sua simpatia era contagiante. Convidou-me a tomar um copo de vitamina - que por sinal estava ótima- e passamos boa parte do dia no quintal... sob o sol da manhã... conversando coisas leves sobre aventuras, sports, alimentação, yoga e psicotrópicos supostamente inofensivos.

Quando cansamos do quintal, voltamos e espreguiçamo-nos nas cadeiras giratórias... dispus-me a fazer um café, mas para minha surpresa ele só bebia chá descafeinado...

- Cafeína não faz bem... e nem acredito que ainda hoje hajam pessoas que fumem - disse isso apontando para a mesa do Sr. R, completamente vazia, não fosse pelo maço de paiol que se exibia solitário.

Ele entrou na internet e me chamou para ver... eram lindas fotos de cachoeiras volumosas, montanhas verdejantes, pássaros, céis azuis... senti meus olhos incharem, quase lacrimejaram... talvez fossse sono - talvez estivesse comovido... não sei ao certo.

- Vou fazer essa trilha esse fim de semana... de bicicleta... bora? - convidou-me gentilmente.

Nesse momento o telefone frenético ao meu lado soou forte... eu me assustei; o homem saudável, nem se mexeu... seus olhos continuavam vidrados na tela... a Repartição não existia para ele...

Fim um movimeno desajeitado para tirar o telefone do gancho... o fio, como sempre, estava completamente enroscado, o que fez todo o aparelho vir junto caindo no chão... como eu odiava com isso acontecia! E era algo tão bem previsível, bem típico desses aparelhos plásticos vagabundos... que não se prendem à superfície e correm desorientados como um lápis numa mesa empenada...

Para evitar um desatre maior projetei o corpo todo para baixo, no intuito de pegar o telefone antes que ele se espatifasse no chão... a corcunda se repuxou... uma pinçada no ciático... e o prenúncio de uma taquicardia enervada...

O homem saudável continuava imerso nas montanhas.

- Então? Bora? -ele cobrava uma responta minha com os olhos na tela.

O telefone se equilibrava nas minhas mãos ainda trêmulas... olhei para o relógio... dentro de minutos o chefe chegaria... e depois os vagabundos da tarde... o tempo começava a esquentar... o sol da manhã não era mais ameno... e os pardais se amontoavam imundos no parapeito das janelas...

Olhei uma última vez para aquelas fotos e senti tristezas...
Aqueles mares de morros não me cabiam... e essas horas da manhã não são minhas...

- Fica para uma próxima...

...uma próxima encarnação- completei em pensamento.

domingo, 26 de julho de 2009

O teatro de sombras


O chefe havia reunido os vagabundos em torno de uma ociosa mesa para exercitar um pouco da fala difícil... de tempos em tempos ele tinha essa necessidade de confessar a esmo um vocabulário rebuscado e fora de contexto...

Era menos uma reunião do que uma tragédia encenada... um monólogo triste retratando os esforços de um rábula em sua agonia na luta homérica contra as palavras...

O tema em pauta não importava... Aliás, nem mesmo havia um tema... Do que poderíamos esperar que ele falasse? Dos novos critérios quantitativos a serem observados nos procedimentos de refill das almofadas de carimbo? Da proposição de novas diretrizes para a reforma dos cabeçalhos dos formulários de ofício? Da abertura de inquérito administrativos para investigar o culpado pelo não fechamento da garrafa de café no dia anterior?

Mesmo cientes da completa perda de tempo que aquilo tudo representava, éramos todos solidários com aquele homem... Afinal, tínhamos todo o tempo do mundo para perder... Tempo livre era o que não faltava...

Ademais, havia ali um acordo muito sutil... Deixávamos o homem encarnar uma mistura de Roberto Justus com Rui Barbosa por alguns instantes durante o mês; e ele não nos pertubaria com trabalhos inventados...

Franzíamos as sombrancelhas... apoiávamos levemente cotovelo na mesa e o rosto no indicador e polegar... inclinávamos o corpo para frente... e deixávamos ele devagar sobre procedimentos, portarias, protocolos... Enfim, tudo aquilo que em geral era passível de imprimir novas dificuldades a coisas simples e corriqueiras....

Não raro eram as vezes em que, durante essas reuniões encenadas, improvisávamos nosso papel de maneria mais ativa e esforçada... Quando percebíamos que ele se travara nas armadilhas de uma contrução sintáxica ardilosa por ele próprio concebida, intervínhamos para livrá-lo do constrangimento...

Lembro-me de que certa vez após discorrer sofregamente acerca de uma nova Lei que absolutamente nenhum efeito prático implicava para o funcionamento da Repartição; o chefe abrira pela primeira vez espaço para a intervenção de seus interlocutores vagabundos:

"Tendo em vista considerar encerrada a exposição de motivos dessa nova Lei, ora passo a palavra à mesa... para fins de comentários acerca do tema em tela".

Todos entreolharam-se com surpresos... Ninguém esperava por essa... Não justamente agora que já adentrávamos o sagrado horário de almoço... Teria ele sentido que estávamos com nossas mentes a anos-luz de distância daquela Repartição durante sua fala? Teria ele o intuito de nos castigar por não estarmos fingindo atenção com o devido afinco?

Fato é que tudo indicava que, até o momento, aquela reunião não saciara sua perversão pelas palavras difíceis... Então ele foi além:

"Temos ainda alguns minutos para a inclusão de uma outra pauta... sugestões?"

Houve um silêncio mórbido e acanhado... Era um silêncio tirâncio que emanava do chefe e espalhava-se em todas as direções... dominando a mesa inteira, salvo a minha extrema direita...

É que de lá rugia uma cadeira giratória que desde o começo da reunião vinha sendo tranquilamente e discretamente embalada de uma lado para o outro...

Sentado ereto nessa cadeira... com o semblante sereno... os dois cutuvelos descansando simetricamente no apoio de braços... os dedos entrelaçado à frente do peito... lá estava o único homem capaz de nos redimir: o Sr. R

Ele parecia saber que contávamos com ele para evitar que fossemos privados do horário de almoço, sendo submetidos a mais meia hora de desnecessariedades...

E nós tínhamos certeza que aquele homem não nos decepcionaria.

Sua voz ressoou clara, densa, e elegante- todos atributos que o léxico jurídico capenga do chefe não tinha.

"O que vamos fazer com aquela caixa de marimbondos na sala de arquivo?"- inquiriu o Sr. R

Meu corpo estremeceu... os músculos do abdomem se contraíram a ponto de eu conseguir conter o riso... mas não pude deixar que escapasse um ruído gutural e que um sorriso torto se instalasse no meu rosto...

"Bem... eu... eu... não creio que esse assunto seja adequado a esse foro"- gaguejando, o chefe replicou.

"Ótimo, podemos todos almoçar então" -disse o Sr. R, e foi logo se levantando.

Todos fizeram o mesmo em seguida...

O chefe não teve como reagir... ele ficou pasmo... colhendo papéis sobre a mesa... naquele momento até mesmo as palavras mais simples e singelas lhe fugiam... era o preço que agora pagava pelo desprezo cultivado por elas...

O Sr R. saía em direção à porta.

Alcancei-o... bati às suas costas e perguntei respeitosamente onde ele iria almoçar.

"Em casa"- respondeu secamente, e continuou caminhando tranquilo.

Eu o observava parado à porta... Antes de entrar no carro, tirou um cigarro de palha do bolso da camisa surrada, acendeu-o com uma longa baforada e colocou os óculos escuros... os poucos cabelos brancos que ainda tinha desgrenhavam-se ao vento...

"Faz um café para a gente tomar quando eu voltar"- gritou sem olhar para mim antes de arrancar no palio cinza.

Eu então corri para a cozinha e fiz o café mais forte que alguém poderia conceber... gastei praticamento o pó de um pacote interio... e aguardei o Sr. R até o fim do expediente... mesmo sabendo que as chances dele voltar naquela tarde para a Repartição eram mínimas.

sábado, 27 de junho de 2009

Sonhos gordos de inverno


O inverno na Repartição é época dos sonhos acordados.

As friagens desses dias trazem tremores às pernas e bambezas indolentes aos pensamentos.

O melhor que se pode fazer nessas horas mortas é arrastar uma cadeira para perto da janela e aproveitar uns parcos raios de sol enquanto se olha o movimento lá fora...

E foi justamente o que eu fiz...

Acontece que cada janela tem um dono... (a melhor sem dúvidas é a janela da mesa que recentemente foi apropriada pelo Sr. R)... e a minha é de todas a que tem pior vista: o porteiro e uma parede descascada era tudo o que eu via lá de fora.

A porra daquele porteiro era tudo o que eu tinha para me distrair!

O porteiro fofocando pela centésima vez a mesma piada indecente... o porteiro secando a mesma ninfeta que passava lá pelas duas da tarde... o porteiro contando vantagens para o flanelinha... o porteiro tomando café... o porteiro posando de xerife para uma velha que lhe pedia uma informação.

Estava cansado daquele homem.

E por isso eu olhava o céu

Havia muitas nuvens bonitas... era relaxante vê-las dançar graciosas ao som das impressoras a laser... Uma nuvem em particular me chamou a atenção e serviu de mote para essas lembranças que agora passo a relatar.

Aquele cúmulo pesado, cinzento e gordo que se arrastava lentamente fazia lembrar os contornos monstruosos da Sra. L... a gorda louca do Setor de Recursos Humanos.
Foi numa desvairada tarde de segunda-feira que a vi pela primeira e única vez. Tamanho trauma e desgaste me causara o episódio que desde aquele dia rezo sempre para que nunca mais eu torne a participar de semelhante absurdo... daquele despropósito... daquela insensatez espalhafatosa patrocinada pela Sra. L.
Éramos uma turma de cerca de 20 burocratas recém empossados... era nosso primeiro dia no serviço público... faziamos o programa de treinamento que duraria uma semana... tinhamos o passo firme, as colunas eretas, e a esperança no começo de uma vida profissional cheia de desafios e emoções.

Foi então que nos encaminharam para o pátio...

Lá havia uma tenda branca meio encardida... a tenda havia sido montada bem no meio do pátio e sob ela havia uma mesa de lanches com coxinhas... pasteizinhos... e uma garrafa de refrigerante diet... Tudo levava a crer que os salgados estavam frios e o refri quente...

Aquilo já não estava me cheirando bem...

Mas foi quando avistei sobre a mesa um micro-system e uma listinha entitulada "exercícios de ginástica laboral-motivacional" é que tive certeza que a coisa iria ficar mesmo feia.

Antes mesmo que eu pudesse simular uma dor de cabeça ou algo que me tirasse dali escutei fortes palmas e um grito alegre:

" Vamo lá gente... todo mundo dando as mãos e fazendo um círculo"

Era tarde demais...

Virei-me e dei de cara com ela: assim como gorduras, penduricalhos dourados saltavam de tudo quanto é lado... as roupas coloridas e esvoaçantes... a maquiagem pesada... e uma alegria doentia cuidadosamente construída ao longo de milhares de páginas de auto-ajuda...

Por medo de ter de pagar uma prenda ainda mais vergonhosa não ofereci resistência e ingressei logo no círculo tirânico daquela gorda.

Estavamos todos aterrorizados, pois sabíamos muito bem o que nos aguardava...

A gorda nos obrigaria a uma apresentação na qual deveríamos inventar alguma sandice sobre nossas qualidades e defeitos... os mais tímidos seriam entregues para cristo, pois a gorda os faria encenar um teatrinho... haveria uma mini-gincana e deveríamos fingir empenho e competitividade... e para finalizar a gorda ligaria o micro-system e faria tocar uma canção do Lulu Santos ao som da qual todos deveríamos cantar e dançar de mãos dadas...

E foi o que realmente houve...

Mas algo ainda mais incrível aconteceu.

Assim que a música acabou, soltamos logo as mãos suadas do companheiro ao lado... foi quando foguetes começaram a estourar... Provavelmente era algum morador da favela próxima a anunciar a subida das barcas policiais... Mas para a gorda louca os foguetes tinham um significado diferente.

Tão logo ela ouviu os foguetes arregalou os olhos e berrou:

"Esses foguetes são para vocês gente... vocês merecem... vocês lutaram tanto para chegar até aqui ... e terão uma carreira brilhante... palmas para vocês"

E nós, constrangidos, batemos palmas com ela na esperança que tudo aquilo acabasse logo.

Depois dos foguetes fomos liberados... sem não antes sermos obrigados a um último suplício: colocar o nome e o email em uma lista de contatos.

É que essa lista seria usada pela gorda louca para nos convocar para uma confraternização a se realizar dali a três anos: o "Baile da Estabilidade".

Assinei meu nome na lista... falsifiquei um email que não exisitia... e sai dali o mais rápido que pude...

Na minha cabeça uma frase martelava: "Meu Deus... essa mulher é louca... essa mulher é louca"

Segui andando enquanto olhava para trás... a Sra. L agora dançava sozinha e desengonçada debaixo da tenda... a cada passo que eu dava sua imagem ficava menor e mais gorda...

... até virar uma bolinha colorida quicando no meio do pátio cinzento.

domingo, 21 de junho de 2009

Senhor dos destino


Passam-se burocraticamente os anos... trocam-se as chefias... trocam-se as mesas em courvim e as cadeiras giratórias.... aumentam as minhas dores nas costas. Certas coisas mudam. Mas aprendi desde cedo na carreira que a há coisas que não mudarão nunca. Há coisas que encerram a própria essência angustiada do burocrata: vazios, inércias; ausências; silêncios; carimbos e ofícios...

É preciso adaptar-se delicadamente às lerdezas da Repartição ou sofrer as chagas de uma eficiência estéril... Perdendo a dignidade na tentativa de se mostrar útil... Esse é o caso do nosso pobre chefe.

Desde que a Seção de Contratos lhe enviou um ofício implorando para que nao lhes fossem mais encaminhados Relatórios que não fossem requisitados, que não tinham motivos para existir, e que ocupavam inutilmente espaço na sala de arquivos, o chefe deprimiu-se e não vem trabalhar.

Ele não vem trabalhar e por consequência a Repartição fica como eu a encontrei hoje...

Vazia.

As mesas vazias... o balcão vazio... o secar de uma almofada de carimbo ao relento... e um mosquito que hiberna sobre uma impressora encardida.

Não havia ninguém.

Mas eu sabia muito bem onde todos eles estavam. Atravessei as mesas solitárias, passei pela cozinha e já pude ouvir os burburinhos nos fundos. Os vagabundos se reuniam em torno de uma mesa plástica... alguns de pé, outros sentados... mas todos igualmente resguardados sob a sombra daquela árvore feia e mal cuidada... a única em todo o descampado poeirento do quintal.

Puderam me ver chegando. E perceberam meu olhar inquisitor de quem mesmo sem moral nenhuma para questionar vagabundagens, ainda que saber: "Por que vocês não estão lá dentro?"

Antes que eu abrisse a boca para perguntar qualquer coisa a Sra. P foi logo se adiantando:

"Disseram que a caixa d´água está transbordando e o teto ameaça ceder sobre nossas cabeças... nessas condições não dá para trabalhar."

E voltaram a tagarelar alegremente tal qual crianças desfrutando o horário vago na falta de um professor ao compromisso.

Eu peguei um café e fiquei por lá a rondar os vagabundos. Aqueles assuntos realmente não me interessavam: receitas de canjiquinha e arroz-doce; relatos de gloriosos feriados no hotel-fazenda; consultas ao médico; diagnósticos desencontrados; e cânceres em família. O único ali que poderia me entreter era o Sr. R- que mais uma vez havia atestado sua sagacidade saindo mais cedo do expediente.

Ficar ali era perda de tempo.

Resolvi entrar por dois motivos: 1) Talvez ver de perto a caixa d´água explodir e ser soterrado em meio aos escombros da Repartição fosse a coisa mais emocionante que pudesse acontecer comigo em toda a minha vida de burocrata; 2) Desde que eu botei os pés na Repartição hoje, eu vinha sentindo meu coração palpitar dizendo que algo de importante estava para acontecer.

Entrei e sentei-me ao balcão.

Apurei o ouvido para qualquer baruho estranho vindo do teto que anunciasse a catástrofe. Mas eu nada ouvia.

Fiquei lá a tarde inteira à espera de alguém... um advogado insolente com um falar difícil... um cidadão comum que viesse humildemente pedir uma informação.

Mas ninguém veio. Os vagabundos também não vieram.

Já adentrava o fim de expediente... o sol se punha... tudo ficara ainda mais triste... o café ficava mais frio... e eu preparava para deixar o balcão quando ele entrou.

Era alto... sua presença impunha... e mesmo tentando, não conseguia dissumilar que ele não era. Mesmo debruçando sobre o balcão e escondendo o rosto envergonhadamente por trás dos óculos escuros, não pude deixar de reconhecê-lo.

Por respeito ao seu esforço, fingi não saber quem ele era. Fingi que não se tratava de um famoso ator que há muito andava desparecido do horário nobre.

Antes poderoso; rodeado por lindas mulheres; dono de um grande ego semanalmente massageado no Faustão... Agora cabisbaixo; feito um cachorro assustado; implorando por urgência na certidão.

O que fazer numa situação dessas? Qual é a coisa certa?

Compadecer de seu sofrimento, driblar todos esses procedimentos burocráticos patentemente inúteis e dar-lhe logo a certidão? Ou por respeito ao brasileiro médio, submetê-lo aos mesmos trâmites que tanto desespero causam às pessoas comuns?

A vida biônica de burocrata nos impõe dilemas para os quais nossos corações humanos não estão preparados para enfrentar.

O homem não é um número... a lei não é senhora de nossos destinos.

Enquanto eu pensava nessa coisas ele irrompeu impacientemente do outro lado do balcão:

"Dá para agilizar? Tenho mil e um compromissos para ontem..."

Ele tornara as coisas mais fáceis...

Dei-lhe então a lista com todos procedimentos para se obter a certidão... imprimi 3 guias de recolhimento a serem pagas no banco... e orientei-lhe que voltasse daqui a 1 semana.

E aqui na Repartição até hoje o teto ameaça despencar.

sábado, 6 de junho de 2009

Visão do paraíso


Foi com espanto que os vagabundos da Repartição receberam a notícia de que a Sra. V, a vagabunda que fazia tudo errado, nunca mais daria as caras por lá.

O chefe havia dado a notícia rapidamente e voltado à sua sala, onde continuou se entretendo com pequenos trabalhos inventados. Por sua vez, os outros burocratas presentes reuniram-se na cozinha e puseram-se a fofocar entre goladas de café e farelos de biscoito água e sal.

A reunião vagabunda que começara com um furdúncio de protestos indiganados, evoluíra agora para suspiros e cochichos secretos... velório burocrático.

A atmosfera era de culpa... É que só agora depois da notícia do frenético chefe percebeu-se que a há quase um mês Sra. V não vinha vadiar na Repartição... Uma alma sequer acusara sua ausência... Tamanha era sua importância para o lento caminhar dos procedimentos cartorários que ninguém perguntara por ela... Sua mesa encontrava-se agora exatamente como a um mês atrás: vazia...

Os vagabundo encheram novamente os copos com café e, corroídos pela culpa, inventavam elogios capegas à Sra. N: "Ela era uma ótima servidora... muito prestativa... nunca se atrasava... nunca deixava faltar tinta às almofadas de carimbo... tinha sempre um clipe à mão...". E terminaram dissimulando por unanimidade que sentiriam falta dela.

Contemporizada a culpa nos corações e subido o café às cabeças, algumas perguntas vieram à tona...

Como pode um modelo de vagabundagem daqueles que era a Sra. N ter sido aposentada por invalidez em função de L.E.R?

Ora, esta era doença de gente trabalhadora... estressada... frenética... A menos que tal patologia fosse também causada por preguiçosa paralizia das juntas, a Sra. V não poderia a ter contraído... Haveria a pacata Sra. V aplicado o perigoso golpe do diagnóstico comprado?

Era uma possibilidade... nunca se deve subestimar a força com a qual os burocratas perseguem os sonhos da aposentadoria precoce por invalidez.

Fuxicar a vida alheia é para um vagabundo mais do que um hábito... é quase um dever. No entanto, mais importante do que desvendar o estranho caso do primeiro servidor público a contrair L.E.R., era resolver a disputa pela mesa da Sra. V.

Se a aposentadoria por invalidez é um longínquo sonho ... a mesa da Sra. V passou a ser uma sonhada realidade possível a todos os vadios dali...

Era a visão do paraíso burocrático... Uma mesa em courvim limpa ... longe do balcão de atendimento e de estridentes aparelhos telefônicos... completamente escondida por uma pilastra dos bisbilhotamentos do chefe... ventilada de frente por uma ampla janela que convidava um solzinho preguiçoso pela manhã... estirada ao lado do bebedouro.... e logo abaixo de uma verdejante samambaia, que remete a alma mais deseperada e frustrada ao sono e à paz interna.

Todos inclusive eu manifestaram vontade em tomar posse da mesa deixada pela Sra. V.

Mas eu sabia que minhas chances eram poucas... não gozava de prestígio entre os burocratas... e não estava disposto a ingressar uma longa negociação junto àqueles vagabundos.

O velho,tarado e diabético, o Sr D. preferiu continuar em sua mesa próxima ao balcão... Assim poderia conferir mais de perto as advogadas que se aproximavam e com alguma sorte engatar uma constrangedora conversa mole.

A disputa ficou então entre dois vagabundo.

Um, para angariar apoio, propunha bancar o almoço de toda a Repartição durante 2 meses... O outro se dipunha a deslocar duas linhas telefônicas para a mesa, aliviando os companheiros da irritante tarefa de atendê-los.

A Repartição dividiu-se entre esses dois lados. Estavam empatados. E faltava ainda um burocrata a opiniar...

Como não poderia deixar de ser, a decisão de minerva estava sobre os ombros do mais experiente e sábio: O Sr. R...

O elegante dândi burocrático fumava no quintal alheio ao furdúncio todo causado pela controvérsia da mesa perfeita.

Chamado a opinar veio andando ereto e a passos lentos e graciosos rumo à mesa onde todos encontravam-se reunidos. Ao passar pela cozinha encheu um copo de café e entrou esfumaçando o ambiente com seu cigarro.

As partes expuseram seus argumentos e seguiu-se um longo silêncio até que o Sr. R começasse a deliberar...

Olhando fixo a mesa disputada disse solenemente ao vagabundo que propusera subornar os colegas com almoços pagos: " Nem tudo nesta vida está a venda!".... E ao que havia se proposto a atender as duas linhas que seriam deslocadas para a mesa: "Você está fora do seu juízo? Pretende macular a tranquilidade desta mesa perfeita com dois telefones?".

E prolatou sua sentença que por natureza era irrecorrível: "Eu sou o mais antigo de casa, e fico então com a mesa!"

Para selar a decisão, o Sr. R, num gesto simbólico, abre a gaveta e joga lá dentro seu maço de cigarros.

Nenhum questinamento sobre a decisão surgiu.

A questão da mesa estava pacificada.

O paraíso tinha um novo dono.
 
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